domingo, 29 de setembro de 2013

FRANCISCO, UM AMIGO LÁ DE CASA



 Em seis meses de pontificado não aconteceu nada de extraordinário e aconteceu tudo o que é essencial.

Depois de vermos os partidos ditos de orientação cristã a destruírem todos os princípios propagandeados nas suas campanhas arregimentadoras dos mais incrédulos; de ouvirmos ou lermos (quem tiver estômago para tal) uma eminência serôdia do mais abjecto sentido de leigo cristão de outrora ou da sua projecção actual (João César das Neves); de sentirmos o oportunismo regente dos nossos governantes na proclamação de hipotéticos caminhos religioso-cristãos para apoucar o povo português ou silenciá-lo (como outrora a inquisição agia sobre os cristãos novos ou marranos) acenando com a falsa bem-aventurança da pobreza… Ler (mesmo que não se seja cristão ou religioso) um texto como o que Frei Bento Domingues escreveu no Público de hoje, 29 de Setembro, sabe bem e apresenta uma réstia de esperança para a humanidade:

1. A ressurreição do obviamente humano e cristão, nos gestos e nas palavras do Papa Francisco, depois dos artificiosos muros levantados, nas últimas décadas, por condenações e propaganda — ocultando crimes financeiros e comportamentos pedófilos — tornou-se a mais pacífica, profunda e surpreendente revolução do nosso tempo. Este processo exemplar tem uma história. Não esqueçamos que o anúncio do Vaticano II aconteceu de modo totalmente inesperado. João XXIII, sem consultar ninguém, desarrumou séculos de “tridentinismo”. O desenvolvimento do Magistério pontifício, depois do Concílio de Trento (1543-1563), acentuado no séc. XIX e prolongado na primeira metade do séc. XX, atingiu, com Pio XII, o paroxismo. A centralização romana multiplicou intervenções repressivas, alimentadas por delacções e processos tenebrosamente secretos. Por outro lado, depois da declaração da “infalibilidade papal” no Vaticano I (1869-1870), embora muito circunscrita, tudo o que vinha de Roma passou a ter uma auréola sagrada: era indiscutível.

2. A turbulência desencadeada antes, durante e depois do Vaticano II só se compreende tendo em conta esse longo e complexo tempo eclesial de resistência, criatividade e repressão. Ninguém de bom senso poderia supor que tudo se resolveria com a aplicação de documentos conciliares ao conjunto da Igreja situada em universos geográficos, culturais, religiosos, económicos e políticos tão diversos. A reforma desejada, na linha aberta por João XXIII, foi sistematicamente adiada em vários domínios e, mais do que isso, contrariada. Os processos instaurados pela Congregação para a Doutrina da Fé ao pensamento cristão mais inovador pareciam querer restaurar um tempo de má memória. A debandada de padres, religiosos, religiosas e militantes católicos foi uma tristeza. Quando se falava da necessidade de um novo concílio, a resposta disponível era sempre a mesma: ainda não foi posto em prática o Vaticano II, como se vai entrar na aventura de um terceiro? O próprio “Ano da Fé” serviu para abafar os questionamentos que o cinquentenário do concílio poderia levantar. Optou-se por fazer dele um assunto de arquivo, em vez de uma provocação para o século XXI. Bento XVI mostrou-se incapaz de reformar a cúria — a que pertenceu durante muitos anos — e de convocar um novo concílio. Preferiu demitir-se e provocar um conclave electivo, tornando possível outro caminho.

3. Nestes últimos anos, foram muitos os grupos e movimentos, de homens e mulheres, de religiosos, religiosas, de padres, de teólogos, teólogas que manifestaram a urgência de reformas na Igreja, em diversos sectores de vida, organização, ministérios e actividades. A divulgação das notícias, das análises e das propostas, a nível local e geral, alargou e aprofundou a consciência eclesial de muitos cristãos. Parece que essas iniciativas não encontraram muito eco na Cúria romana e nos últimos Papas. Por vezes serviram, até, para levantar, nas paróquias e nas dioceses, a suspeita de que se tratava de pessoas e grupos pouco católicos, de reduzido amor à Igreja, de falta de respeito pelos seus pastores e indignos de se reunirem nos espaços das congregações religiosas e das paróquias. Nenhum desses movimentos teve muito tempo para conferir o que este Papa estava a concretizar ou não, ao nível das reformas desejadas e formuladas. O próprio Papa não teve de esperar pela realização de algumas propostas e medidas que preconizou. Em seis meses de pontificado não aconteceu nada de extraordinário e aconteceu tudo o que é essencial. O Papa Francisco manifestou, por atitudes, gestos e palavras, que deseja ser um homem cristão ao serviço de uma Igreja de todos — todos somos Igreja — que sirva o mundo a partir dos mais pobres e excluídos. Não fez um tratado acerca do que deve ser um Papa, um bispo, um padre, um cristão no mundo de hoje. Começou por ser isso tudo, à vista de toda a gente. Teve, com certeza, de se converter ao longo da vida — ainda se confessa, com verdade, um pecador — para matar as tentações de carreirismo eclesiástico e tornar-se um pároco simples que considera o mundo todo, de crentes e não-crentes, como a sua paróquia. Perdeu a pose episcopal, cardinalícia, papal. As pessoas começaram a considerá-lo da sua família, um amigo lá de casa. Um amigo incómodo que levanta questões aos instalados no dinheiro e no poder. Foi à Sardenha dizer que o mundo tem um falso centro, o ídolo Dinheiro, que instala a cultura do descarte: descartam-se os idosos e os jovens, uns porque não podem trabalhar e outros porque não têm trabalho, condição da dignidade, pois significa levar pão para casa e amar. Deus colocou, no centro do mundo, a mulher e o homem, a família humana. Para denunciar, de modo eficaz, o actual centro idolátrico do mundo, é preciso não ser ingénuo. Bastará a astúcia da serpente e a bondade da pomba?
Continuaremos a conversar com o amigo lá de casa.

Os realces, os negritos e os sublinhados são nossos.


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