Depois de vermos os partidos ditos de orientação cristã a destruírem todos
os princípios propagandeados nas suas campanhas arregimentadoras dos mais
incrédulos; de ouvirmos ou lermos (quem tiver estômago para tal) uma eminência serôdia
do mais abjecto sentido de leigo cristão de outrora ou da sua projecção actual
(João César das Neves); de sentirmos o oportunismo regente dos nossos governantes na
proclamação de hipotéticos caminhos religioso-cristãos para apoucar o povo
português ou silenciá-lo (como outrora a inquisição agia sobre os cristãos
novos ou marranos) acenando com a falsa bem-aventurança da pobreza… Ler (mesmo
que não se seja cristão ou religioso) um texto como o que Frei Bento Domingues
escreveu no Público de hoje, 29 de Setembro, sabe bem e apresenta uma réstia de
esperança para a humanidade:
1. A
ressurreição do obviamente humano e cristão, nos gestos e nas palavras do Papa
Francisco, depois dos artificiosos muros levantados, nas últimas décadas, por
condenações e propaganda — ocultando
crimes financeiros e comportamentos pedófilos — tornou-se a mais pacífica, profunda
e surpreendente revolução do nosso tempo. Este processo exemplar tem uma
história. Não esqueçamos que o anúncio do Vaticano II aconteceu de modo
totalmente inesperado. João XXIII, sem consultar ninguém, desarrumou séculos de
“tridentinismo”. O desenvolvimento do Magistério pontifício, depois do Concílio
de Trento (1543-1563), acentuado no séc. XIX e prolongado na primeira metade do
séc. XX, atingiu, com Pio XII, o paroxismo. A centralização romana multiplicou intervenções
repressivas, alimentadas por delacções e processos tenebrosamente secretos. Por
outro lado, depois da declaração da “infalibilidade papal” no Vaticano I
(1869-1870), embora muito circunscrita, tudo o que vinha de Roma passou a ter
uma auréola sagrada: era indiscutível.
2. A
turbulência desencadeada antes, durante e depois do Vaticano II só se compreende
tendo em conta esse longo e complexo tempo eclesial de resistência, criatividade
e repressão. Ninguém de bom senso poderia supor que tudo se resolveria com a
aplicação de documentos conciliares ao conjunto da Igreja situada em universos
geográficos, culturais, religiosos, económicos e políticos tão diversos. A
reforma desejada, na linha aberta por João XXIII, foi sistematicamente
adiada em vários domínios e, mais do que isso, contrariada. Os processos instaurados pela Congregação para
a Doutrina da Fé ao pensamento cristão mais inovador pareciam querer restaurar
um tempo de má memória. A debandada de padres, religiosos, religiosas e
militantes católicos foi uma tristeza. Quando se falava da necessidade de um
novo concílio, a resposta disponível era sempre a mesma: ainda não foi posto em
prática o Vaticano II, como se vai entrar na aventura de um terceiro? O próprio
“Ano da Fé” serviu para abafar os questionamentos que o cinquentenário do
concílio poderia levantar. Optou-se por fazer dele um assunto de arquivo, em
vez de uma provocação para o século XXI. Bento XVI mostrou-se incapaz de reformar
a cúria — a que pertenceu durante muitos anos — e de convocar um novo concílio.
Preferiu demitir-se e provocar um conclave electivo, tornando possível outro
caminho.
3.
Nestes últimos anos, foram muitos os grupos e movimentos, de homens e mulheres,
de religiosos, religiosas, de padres, de teólogos, teólogas que manifestaram a
urgência de reformas na Igreja, em diversos sectores de vida, organização,
ministérios e actividades. A divulgação das notícias, das análises e das propostas,
a nível local e geral, alargou e aprofundou a consciência eclesial de muitos cristãos.
Parece que essas iniciativas não encontraram muito eco na Cúria romana e nos
últimos Papas. Por vezes serviram, até, para levantar, nas paróquias e nas
dioceses, a suspeita de que se tratava de pessoas e grupos pouco católicos, de
reduzido amor à Igreja, de falta de respeito pelos seus pastores e indignos de
se reunirem nos espaços das congregações religiosas e das paróquias. Nenhum
desses movimentos teve muito tempo para conferir o que este Papa estava a concretizar
ou não, ao nível das reformas desejadas e formuladas. O próprio Papa não teve
de esperar pela realização de algumas propostas e medidas que preconizou. Em seis meses de pontificado não aconteceu
nada de extraordinário e aconteceu tudo o que é essencial. O Papa
Francisco manifestou, por atitudes, gestos e palavras, que deseja ser um homem
cristão ao serviço de uma Igreja de todos — todos somos Igreja — que sirva o
mundo a partir dos mais pobres e excluídos. Não fez um tratado acerca do que deve
ser um Papa, um bispo, um padre, um cristão no mundo de hoje. Começou por ser isso
tudo, à vista de toda a gente. Teve, com certeza, de se converter ao longo da
vida — ainda se confessa, com verdade, um pecador — para matar as tentações de
carreirismo eclesiástico e tornar-se um pároco simples que considera o mundo
todo, de crentes e não-crentes, como
a sua paróquia. Perdeu a pose episcopal, cardinalícia, papal. As pessoas começaram
a considerá-lo da sua família, um amigo
lá de casa. Um amigo incómodo que levanta questões aos instalados no dinheiro
e no poder. Foi à Sardenha dizer que o mundo tem um falso centro, o ídolo
Dinheiro, que instala a cultura do descarte: descartam-se os idosos e os
jovens, uns porque não podem trabalhar e outros porque não têm trabalho,
condição da dignidade, pois significa levar pão para casa e amar. Deus colocou,
no centro do mundo, a mulher e o homem, a família humana. Para denunciar, de
modo eficaz, o actual centro idolátrico do mundo, é preciso não ser ingénuo.
Bastará a astúcia da serpente e a bondade da pomba?
Continuaremos a
conversar com o amigo lá de casa.
Os realces, os negritos e os sublinhados são nossos.
Sem comentários:
Enviar um comentário