domingo, 15 de março de 2020

A maior revolução religiosa





A maior revolução religiosa


Frei Bento Domingues O.P.

A conversa sobre o papel das mulheres na Igreja não avança porque não se liga nada à importância que Jesus lhes atribuiu

1 É muito complexa a história do povo samaritano. Segundo a investigação de 2019, existiam apenas 820 samaritanos. Parece que num passado remoto ultrapassaram o milhão [1]. Apesar da sua reduzida expressão numérica actual, a liturgia cristã não os pode esquecer. Ao longo do ano litúrgico, são muitas as referências, extremamente simpáticas, dedicadas a esse povo semita que era detestado pelos judeus por ter conservado, da herança comum, apenas o Pentateuco e ter levantado um lugar de culto rival do templo de Jerusalém. Mas porque será que os textos do Novo Testamento construíram, por contraste, figuras samaritanas que apresentam como exemplares para todos os tempos e lugares?
Esses textos não são as actas factuais do comportamento de Jesus de Nazaré. São interpretações contextuais dos seus atrevimentos, mas não há dúvida de que este galileu insólito não suportava aquele ódio fratricida nem a justiça do olho por olho, dente por dente [2]. Esses textos de inapagável beleza atribuem a um judeu a apresentação de figuras samaritanas — figuras de um povo rival — como exemplo do que deve ser um discípulo da Lei Nova do Evangelho. O Nazareno não fazia acepção de pessoas. Tanto curava judeus como samaritanos ou gentios. Eram doentes, e só por isso deviam ser socorridos sem mais considerações. Mesmo assim, destaca que entre os dez leprosos curados só um samaritano veio agradecer.
Segundo o Evangelho de S. Mateus, quem mais precisava de conversão era Israel e, por isso, é em primeiro lugar às ovelhas perdidas deste povo que se dirige a intervenção de Jesus [3]. Paulo também começou a sua pregação pelas sinagogas, pelos judeus. Mas depressa descobriu que, em Jesus, não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, não há circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo ou livre. O que importa é que a vida e a mensagem de Cristo sejam tudo em todos [4]. Existem, no entanto, narrativas de ruptura, de natureza altamente simbólica, que são dedicadas a exaltar figuras samaritanas. Comecemos por uma que é proclamada, hoje, na Eucaristia e constitui uma radical revolução religiosa. Pertence ao capítulo 4.º do Evangelho de S. João e está disponível online.
2. Jesus estava de viagem e parou, em Sicar, cidade da Samaria, enquanto os discípulos foram procurar alimentos. Estava cansado, sozinho, com muita sede e sentou-se junto do famoso poço de Jacob de profundidade excepcional (32 metros!), com água sempre fresca mesmo sob o sol escaldante do meio-dia.
Entretanto, veio uma mulher da Samaria para tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. A samaritana espantou-se: Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, a mim, que sou samaritana? Jesus muda de registo. Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem te pede: dá-me de beber, tu é que lhe pedirias, e Ele dar-te-ia água viva! A mulher goza com esse despropósito: Senhor, não tens sequer um balde e o poço é fundo... Onde consegues, então, a água viva? Porventura és mais do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço donde beberam ele, os seus filhos e os seus rebanhos?
Jesus retoma a iniciativa: Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede; mas quem beber da água que Eu lhe der nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há-de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna. A mulher aproveita a deixa: Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la.
Como não era bem visto falar com uma mulher em público sem o marido, Jesus diz-lhe: Vai, chama o teu marido e volta cá. A mulher retorquiu-lhe: Não tenho marido. Jesus revela a situação real desta samaritana extraordinária: Disseste bem: não tenho marido, pois tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido. Nisto falaste verdade. A mulher não se deu por achada: Vejo que és um profeta! Então explica-me: Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém.
3. Começa a revolução: Jesus declarou-lhe: Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai.
Ainda tentou afirmar a superioridade judaica, mas deu-se conta de que isso já não fazia sentido. Chegou a hora em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.
Ainda hoje, 2020, se procura vencer a violência louca em nome de Deus por meio do diálogo inter-religioso. É a única alternativa defensável. Acontece, porém, que, em muitos desses diálogos, cada um dos intervenientes não vai além de manifestar aquilo em que está de acordo e o que julga inaceitável. Raros são os que fazem a autocrítica das instituições a que pertencem. Os diálogos repetem-se, mas não fazem avançar para uma nova plataforma que os transfigure e transfigure as suas problemáticas religiosas.
O insólito encontro da samaritana com Jesus venceu os preconceitos de que ambos partiram. A mulher pressente em Jesus o Messias esperado e ele confirma-o. O espantoso é que ela abandona o cântaro. Tinha encontrado outra água e vai a correr à cidade levar a boa nova que descobriu. Não pede que acreditem nela. Vai apenas dar o seu testemunho, levantar uma séria interrogação messiânica e propor aos seus conterrâneos que sejam eles a verificar. Foram e pediram a Jesus que ficasse com eles. “Então, muitos mais acreditaram nele por causa da sua pregação e diziam à mulher: Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo.” É a única vez que esta confissão pública e solene aparece no Evangelho de João.
A conversa sobre o papel das mulheres na Igreja não avança porque não se liga nada à importância que Jesus lhes atribuiu.
P.S.O Evangelho de João é o mais sacramental. É também o da maior revolução religiosa, como vimos. Dadas as circunstâncias da covid-19, não seria de estranhar que a Conferência Episcopal Portuguesa cancelasse as celebrações da Quaresma e da Páscoa que manifestem riscos de contágio. O culto em espírito e verdade não depende das celebrações litúrgicas. Em Lucas, também há um contraste ético entre os zeladores do templo que viram e não ligaram e o herético samaritano que viu e socorreu (Lc 10, 29-37).
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[1]      Para quem desejar conhecer a história do povo samaritano, a Wikipédia é muito abundante na informação, referindo as fontes em que se baseia
[2]      Lc 9, 52-56
[3]      Mt 10, 5-6; Act 8, 5; 13, 44-47
[4]      Gal 3, 27-28; Cl 3, 11



segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Que irão fazer no futuro?





[…]

Racismo e manifestações racistas são consideradas crime público.
Da entidade X à Y, do senhor(a) A ao B, do presidente da assembleia geral K ao presidente Z todos tomaram conhecimento da ignomínia racista que mais uma vez se estava a passar num campo de futebol. E, então…?!
Ah! Estavam lá os agentes da autoridade e os seguranças. Sim!? O que é que fizeram? Então, não é crime público…?!
Ah! A FIFA e a UEFA recomendam (proíbem) imagens de violência ou chocantes. Nada de pôr em risco a boa imagem desportiva, que não existe. Paga-se uma multa – e até é bom, pois enriquece os cofres –, mas o valor até é pequeno: meia dúzia de euros. Não penaliza.
Estou farto que se tape o Sol com a peneira. Isto tem sido nos estádios desportivos… e o resto, as constantes discriminações rácicas na sociedade portuguesa?!
Onde está o nosso grito de revolta?!!
Ficamos muito indignados quando vemos na imprensa estrangeira a constatação de que os portugueses são racistas. Eu fico muito indignado, não pelo que afirmam, mas porque é verdade. A brincar, a brincar manifestamos avulsas manifestações racistas. Isto é verdade.
Ontem conseguiram irritar-me!
Fico, todavia, com uma dúvida: que irão fazer…??

[…]


domingo, 19 de janeiro de 2020

A NOVA REFORMA






Não estou a converter-me ao cristianismo. Não! Talvez nunca tenha deixado de ser cristão, embora, não cumpridor. É assim que tenho acompanhado com elevado interesse o desenrolar dos alertas que o papa Francisco tem apregoado – talvez a “Nova Reforma” –, que só os conservadores, – temerosos de perder as suas prerrogativas totalitárias – a querem ignorar. O Próprio cardeal Ratzinger foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Enquanto tal, criou o deserto teológico na Igreja Católica. Até mesmo o “poema bíblico” Génesis, se assim se pode designar o primeiro livro da Bíblia, o que relata a criação do Universo.
Como escreve Bento Domingues, “o poema bíblico da criação, ao celebrar a vitória sobre o caos e ao exaltar a harmonia humana e divina do universo, é fundamental para não desesperarmos dos trabalhos que exige a sua urgente recriação” na casa de todos nós.
O recente livro do cardeal Sarah pretende considerar como co-autor o cardeal Ratzinger. Não me preocupa se é, ou não, verdade; se é mais uma apologia da misoginia religiosa… que contraria a doutrina do próprio fundador – Cristo.
O carisma do celibato não é, de si, o carisma de um padre ou de um bispo. Na Igreja Católica houve sempre mulheres e homens que optaram por viver o celibato como uma grande graça e é característica de todas as congregações religiosas”. Deveria ser, em princípio, uma opção pessoal. Do mesmo modo, todos os cristãos – pelo Baptismo – deveriam ser considerados sacerdotes…
O cardeal Ratzinger foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Enquanto tal, criou o deserto teológico na Igreja Católica. Queria ser o único. Foi eleito Papa e resignou porque já não se sentia com forças para enfrentar a poluição do Vaticano. Não é Papa emérito. Não é Papa, pura e simplesmente. Neste momento, não há dois papas. Não lhe fica bem alinhar com a campanha dos adversários das reformas urgentes propostas pelo único Papa actual, como diz Frei Bento Domingues.
Ratzinger não deve tentar refazer a Congregação para a Doutrina da Fé – eufemismo moderno para Tribunal do Santo Ofício ou para Santa Inquisição – porque isso seria recriar, mais uma vez, um crime ignóbil, ainda sentido no meio do catolicismo.
A reforma, quer queiram ou não, terá de se fazer.