terça-feira, 26 de dezembro de 2017

DESCRUCIFICAR




O Papa Francisco foi confrontado por uma menina, no Vaticano, que o questionou porque, sendo papa, tendo direito a viver no luxo, a ter grandes e faustosos carros, a viver no máximo dos confortos […] o não fazia. Francisco respondeu-lhe: “já me fizeram essa pergunta; foi um professor que a fez. Eu respondi-lhe que isto era um problema do foro psiquiátrico…”.

Francisco, confrontado pelos jornalistas acerca do que pensava sobre os homossexuais frequentarem a Igreja, respondeu: “Quem sou eu para os julgar…?”

Mas, já é um quarto dos Cardeais que pretendem a sua condenação – excomunhão.

Frei Bento Domingues, no Público de 17 de Dezembro, escrevia:

“Jesus Cristo não desejou nem santificou a cruz. Alterou-lhe, porém, a significação de forma radical.”

E escreveu muito mais:
[…] hoje podemos acolher a graça da nossa transformação interior que nos associe, de forma activa, às mais diversas iniciativas sociais, culturais e políticas da construção de uma cultura da justiça e da paz, a nível local e global. O Espírito do Natal é Aquele que suscitou o canto subversivo de Maria de Nazaré.

As preocupações com as indispensáveis reformas das “cozinhas eclesiásticas” da Igreja, se não estiverem centradas no estilo da prática histórica de Jesus Cristo e nas urgências dos mais carenciados das nossas sociedades, acabam por nos fazer esquecer que somos nós, [ou que é] a Igreja, que precisamos de reforma permanente.

Frederico Lourenço — a grande figura portuguesa da cultura bíblica fora das sacristias — recorda-nos que os Evangelhos têm, ainda hoje, em 2017, o potencial para mudar o mundo para radicalmente melhor. Sublinha comovido: “Jesus Cristo, com as palavras que lhe são atribuídas nos quatro evangelhos, é a figura que mais me interessa. Continuo a achar que, independentemente de ele ter dito aquelas palavras ou não, elas são as coisas mais extraordinárias que foram ditas à face da terra. Por exemplo, quando leio para mim o Novo Testamento estou num mundo maravilhoso que é só meu e me preenche muito, animicamente, espiritualmente. Apesar de ser um linguista crítico-histórico, não sou um ateu a traduzir a Bíblia. Serei sempre, até ao último segundo da minha vida, um apaixonado por esse judeu chamado Jesus de Nazaré.”[1]

Muitos anos antes, numa entrevista de 1978, Eduardo Lourenço mostrou a verdade da nossa condição, na própria referência cristã: “Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. [...] Foi crucificado, não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição.”[2]

Num belo livro, traduzido por José Sousa Monteiro, deparo com a confissão do marxista Milan Machovec: “O coração duma freira desconhecida que se dedica a uma criança incurável, só poderia ser substituída por uma teoria da história, por um estúpido e um idiota [...]. Pessoalmente, não me traria grande desgosto o facto de a religião acabar. Mas se tivesse de viver num mundo no qual Jesus fosse inteiramente esquecido, então preferia não continuar a viver”[3].

Como escreveu o dominicano E. Schillebeeckx, para Jesus, a história dos seres humanos é a narrativa de Deus acolhido ou recusado[4].

Para o imaginário do Evangelho de S. Lucas, a festa do nascimento de Jesus aconteceu num curral iluminado pela luz do céu, acompanhada pela música dos anjos e rodeado de pastores e estrangeiros. Tudo aconteceu à margem do Templo de Jerusalém e dos palácios imperiais. Aliás, Jesus com o comércio do Templo teve uma relação muito agreste e só conheceu os palácios quando estava a ser julgado e condenado à pena capital. A sua coroa foi de espinhos e o seu trono foi uma cruz.

Esta apresentação testemunha um profundo contraste, mas pode cair na perversão do próprio Evangelho de Cristo, sugerindo que Jesus veio sacrificar-se e semear mais sacrifícios no mundo. Porque será mantida a cruz como símbolo cristão, quando o que Jesus procurava era, precisamente, descrucificar?

A minha hipótese de interpretação é outra, bastante simples, mas que importa explicar. A cruz, a sentença de morte mais bárbara e cruel, fazia parte do mundo que Jesus queria mudar. Então, por que continua a funcionar como um símbolo cristão, quando ela é anti-humana, anticristã?

Ao contrário do que se repete há séculos, Jesus Cristo não desejou nem santificou a cruz. Alterou-lhe, porém, a significação de forma radical. Foi-lhe imposta, num julgamento iníquo, por ele recusar trair o seu projecto. Tornou-se, deste modo, o símbolo da fidelidade inquebrantável, o signo da extrema generosidade. A presença de sinais da cruz, desde o baptismo até à morte, diz que é preciso dizer não à crucifixão da vida e dizer sim à generosidade libertadora, no dia-a-dia.

Tudo isto vem confirmado no trecho do Evangelho escolhido para a celebração da […]: estava Jesus sentado junto ao mar da Galileia e uma grande multidão veio ter com ele e lançou-lhe, aos pés, coxos, aleijados, cegos, mudos e muitos outros[5].

Se o mestre fosse um pregador de sacrifícios dizia-lhes: estais mal? Ainda bem. Assim podeis santificar-vos e, um dia, sereis muito felizes no céu. [puro marketing]

Jesus não acreditava nessa mística. Curou-os e organizou, com pouca coisa, um grande banquete popular. A multidão ficou admirada ao ver os mudos a falar, os aleijados a ficar sãos, os coxos a andar, os cegos a ver e todos a comer até sobrar.

Poder-se-á dizer: porque não deixou a fórmula? Seria uma alternativa muito barata dos serviços de saúde, públicos e privados. Mas ele não veio para nos substituir.

Já na apresentação do seu programa, em Nazaré, ficou claro que o mundo tinha de começar mesmo a mudar. Deus não podia ser O da ira de Iavé, mas O da pura graça do amor. Diz a narrativa evangélica que, nesse momento, os seus conterrâneos o julgaram um subversivo e, por isso, quiseram acabar logo com ele[6].

Os seus comportamentos eram, de facto, estranhos: andava em más companhias, com quem comia e bebia, a ponto de lhe chamarem “comilão e beberrão”; aceitou o convívio de mulheres que não eram todas exemplos de virtude; violava, sistematicamente, o Sábado[7] — o dia mais sagrado da sua religião — com curas que bem podia fazer noutros dias[8].

Não deixou fórmulas ou receitas que pudessem ser transformadas em rituais. A sua prática é um desafio à imaginação de todos os homens e mulheres, de todos os tempos, a usarem os seus talentos, as suas capacidades, não para cavar distância entre ricos e pobres, mas para as eliminar, pois não suporta ver uns à porta e outros à mesa, uns em banquetes requintados e outros na miséria[9].

Será tudo isto do foro psiquiátrico?

A nossa vida vive-se agora…!





[1] Frederico Lourenço, Entrevista, in Ler, Outubro 2017, n.º 147
[2] Eduardo Lourenço, in Opção, n.º 97, pp. 2-8, Março 1978
[3] Cf. VV. AA., Os marxistas e Jesus, Iniciativas Editoriais, Lisboa 1976, pp. 88 e 98
[4] Edward Schillebeeckx, L’histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf, Paris 1992
[5] Mt 15, 29-37
[6] Lc 4, 16-30
[7] Lc 7; 8; 13, 10-17
[8] Lc 7; 8; 13, 10-17
[9] Lc 16, 19-31

domingo, 15 de outubro de 2017

DA MINHA CORRESPONDÊNCIA COM O EDUARDO (9)














Meu caro amigo […]

[…]

Não vou começar uma campanha de defesa de presumidos arguidos do processo “operação marquês”; porém, ainda a procissão iniciou a travessia do adro e já insuspeitas personalidades – entidades que seriam potenciais testemunhas do processo – negam as versões do MP, como é o caso de Sérvulo Correia, representante do Estado na Golden Share da PT, apesar do título do jornal Público indicar sentido diferente, na página 12.

Não tenho muitas esperanças de ver o fim deste julgamento. Ao arranjarem-se mais de quatro mil páginas para a dedução da acusação, é natural e normal que duzentas páginas depois de defender uma tese (escrita a várias mãos) já não se saiba a forma como se escreveu determinado assunto. Começam a aparecer as contradições notadas pelos observadores mais atentos por aqueles que ainda respeitam o sentido da democracia e do direito.

Uma coisa já eu sei: ao ser verdade (se fosse verdade) aquilo de que Sócrates é acusado, ele é um génio do crime. Estando num cargo dos mais escrutinados que pode haver – o de Primeiro Ministro –, conseguiu iludir todos e, sozinho, ludibriar toda a gente: encomendar, decidir, justificar, aprovar, despachar e receber os lucros…, isto tudo, sem que alguém desconfiasse. É de génio!

Olha, meu caro […] isto irrita-me; querem-me fazer passar por parvo...! Posso sê-lo, mas detesto que me forcem a esse convencimento. […]

[…]



segunda-feira, 9 de outubro de 2017

ERNESTO “CHE” GUEVARA




Completam-se, hoje, 9 de Outubro, 50 anos que Che Guevara foi assassinado na Bolívia.


A história não o esquece!


domingo, 24 de setembro de 2017

Um Deus distraído?



Depois de ler, não pude deixar de partilhar este brilhante texto de Frei Bento Domingues, publicado no “Público” de 24 de Setembro de 2017.






Frei Bento Domingues, O.P., de seu nome Basílio de Jesus Gonçalves Domingues, é um religioso da Ordem dos Pregadores, por muitos considerado como um dos maiores teólogos portugueses.
Nasceu a 13 de Agosto de 1934 (83 anos).





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Não é a um Deus distraído que o Papa Francisco reza. Reza para diminuir o mundo dos distraídos.


1. Não têm conta as vezes que me fizeram, e fazem, a pergunta do título desta crónica. Sei que não tenho o exclusivo.
Não escondo que me divertem as pessoas religiosas e teólogas que dão a ideia – pelo que dizem e escrevem, pelo que aconselham ou mandam – que conhecem a vontade de Deus e os seus misteriosos caminhos. A tudo dizem: foi a vontade de Deus, mesmo quando essa expressão, pretensamente piedosa, é o pior insulto que Lhe podem fazer.
Por outro lado, são, por vezes, as mesmas pessoas que, pelas suas repetidas e abundantes orações, supõem que Deus ande mal-informado. As chamadas orações dos fiéis nas Celebrações Eucarísticas, mais ou menos gemidas, tentam lembrar a Jesus a sua responsabilidade pela péssima situação mundial.
Parece que todas as religiões, ou a maioria, têm fórmulas e livros de orações. Basta ir ao Google e, a partir da palavra oração, podemos ficar minimamente referenciados acerca desse mundo, ora sublime ora ridículo.
A nossa ligação fervorosa a Deus deveria estar atenta à nossa radical ignorância. Nunca me posso esquecer que S. Tomás de Aquino, depois de expor a sua epistemologia teológica e de apresentar as razões que tinha para afirmar que Deus existe, empenhou-se em mostrar, imediatamente, que não podemos saber como é Deus. A teologia dele é, sobretudo, uma luta contra as idolatrias que se insinuam em todas as atitudes e discursos religiosos.
Julgo que a religião – embora seja uma palavra de origem latina – nasce da consciência, mais ou menos explicita, do ser humano como realidade limitada. Precisa do outro para nascer, para crescer, para viver e para morrer. Não é auto-suficiente. É, por natureza, carente de cultura e de afectos. É uma realidade em permanente processo. Vai sendo através dos mil contactos cultivados ao longo da vida. É, estruturalmente, um ser aberto. Neste mundo multicultural e multirreligioso desenvolve-se bem ou mal, na recusa ou na aceitação. Quando se fecha aos outros, perde-se e afoga-se em si mesmo.
As boas relações humanas são as de acolhimento e cooperação. As más são as de dominação psicológica, económica, política e religiosa. Por isso, a pergunta mais sagrada, mais religiosa, em todas as situações, talvez seja esta: em que posso ajudar?
Não é por acaso que a primeira grande pergunta que Deus faz, logo no Génesis [1], seja esta: que fizeste ao teu irmão, e seja também a última que julgará a nossa história, segundo o Evangelho de S. Mateus [2].
Mas, então, devemos ou não rezar?

2. Não faltam, mesmo no Novo Testamento, recomendações de que devemos rezar sempre e em toda a parte. Não de qualquer maneira. Nem foi a primeira preocupação de Jesus. Consta, no Evangelho de S. Lucas, que os discípulos se sentiam um grupo um bocado abandonado, nesse aspecto. “Estando [Jesus] num certo lugar a rezar, ao terminar, um dos seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou aos seus discípulos.” [3] Daí, resultou uma longa conversa e uma parábola que termina de forma paradoxal: a única coisa garantida é que o Pai dos Céus dará o seu Espírito aos que o pedirem. S. Mateus põe na boca de Jesus a recomendação: “Nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes necessidade, antes de lho pedirdes.” De facto, deixou-nos apenas pistas muito gerais, no Pai-Nosso [4].
Estas indicações básicas atribuídas a Jesus deveriam merecer mais atenção. A Liturgia das Horas, rezadas em coro em muitas congregações religiosas, serve-se da recitação dos Salmos do Antigo Testamento. É precisa uma grande dose de paciência para aguentar a divisão entre o povo de Deus e os outros povos que não sabemos de quem são, geralmente inimigos. Esse Deus tem o encargo de defender e ajudar o seu povo e de atacar os outros povos. É um mundo pouco edificante de amigos e inimigos. É preciso, depois de Jesus Cristo, estar sempre a fazer descontos na oração.
Fazem parte de cenários em que se põe na boca do Senhor, Deus de Israel, uma narrativa na qual, depois de muitas bem-feitorias ao seu povo, que, finalmente, atravessou o Jordão e chegou a Jericó, faz esta declaração fantástica, coroa de muitas outras: “Combateram contra vós os que dominavam a cidade – os amorreus e os perezeus, os cananeus e os ititas, os girgasitas, os hevitas e os jebuseus – mas Eu entreguei-os nas vossas mãos. [...] Não foi com a vossa espada nem com o vosso arco que tudo isto foi feito. Dei-vos uma terra que não cultivastes, cidades que não construístes e onde agora habitais, vinhas e olivais que não plantastes e de que vos alimentais.” [5]
Pode um cristão rezar a um Deus destes?

3. Anda o Papa Francisco a dizer que não se pode matar em nome de Deus e, depois, louvá-Lo por ser um terrorista, porque eterno é o seu amor?
O diálogo inter-religioso, para não ser um teatro de mau-gosto, deve incluir a crítica das expressões religiosas que ofendem a Divindade maltratando os seres humanos.
Em Assis, já diversas vezes, os representantes de diferentes religiões foram rezar juntos. Nenhum tem o direito de criticar a forma de rezar dos outros, mas todos se deveriam sentir responsabilizados a contribuir, no âmbito da sua religião, para reverem as respectivas formas de rezar.
Por outro lado, se o ser humano é religioso pela interpretação que faz do seu limite, tem de cuidar de não transpor para Deus a sua responsabilidade. Quando se diz, de forma metafórica, que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, isso significa que o ser humano, por ser livre, é responsável pelo seu mundo, pela casa comum.
O Papa Francisco não se cansa de repetir que já estamos, de modo fragmentado, na terceira guerra mundial. Existem sistemas económicos que devem fazer a guerra para sobreviver. Ao fabricar e vender armas sacrificam, nos balanços económicos, o ser humano no altar do deus dinheiro.
Gosto da sua forma de rezar: Queridas irmãs e irmãos, eleva-se de todos os lugares da terra, de cada povo, de cada coração e dos movimentos populares, o grito da paz: guerra, nunca mais! [6]
Não é a um Deus distraído que ele reza. Reza para diminuir o mundo dos distraídos.

_________________
[1] Gn 4, 1-15
[2] Mt 25, 31-46
[3] Lc 11, 1-13
[4] Mt 6, 5-15
[5] Cf. Js 24, 1-13
[6] Politique et société, du Pape François (Rencontres avec Dominique Wolton), Editions de L’Observatoire/Humensis, 2017, p. 11.
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sábado, 12 de agosto de 2017

DAS MINHAS CONVERSAS POR E-MAIL (8)




[…]

Ao passar os olhos pelas páginas do Público, antes de o ler com mais atenção, os meus olhos quedaram-se na página 42 no anúncio do livro de John Locke – Dois tratados do governo civil.

Foi o suficiente para pôr a minha imaginação a trabalhar e fazer ressurgir a minha revolta surda.

Passados quase três séculos, depois de múltiplas revoluções e contra-revoluções na área social e dos direitos humanos, de se discutir Karl Marx e Hengel, sem que, na maioria das vezes, tenham lido algo deles, de se opinar sobre os direitos sociais, sem saber nada do que isto representa, de apelarem aos grandes marcos da sociedade livre – a revolução americana, a revolução francesa, a revolução soviética (desvirtuada rapidamente) e da própria revolução de Abril de 1974 – sem se importarem pelas suas géneses, não vou estranhar que pouco se saiba sobre John Locke.

E, foi assim, que percebi: se a maior e mais antiga democracia do mundo, pelo menos na visão mais moderna de democracia elege uma figura tão asna, iliterata e desrespeitosa dos mais elementares direitos humanos, como se poderia saber que Locke escrevera o primeiro tratado como refutação ao pensamento absolutista e do direito hereditário de Robert Filmer, em Patriarche?

Mais, ainda, quando em pleno século XXI, o servilismo do poder absoluto e das benesses atribuídas aos seus lacaios consente o exercício “político” de um homem que ignora os mais elementares princípios de Equidade, Justiça e Liberdade – Donald Trump –, pondo em risco o equilíbrio social da Humanidade? […]

[…]



quarta-feira, 26 de julho de 2017

DESAPARECEU OU ESTÁ A PREPARAR ALGUMA…




Mandem os fuzileiros procurar Passos Coelho

Passos Coelho desapareceu, deixou de se ver desde que foi beber ponchas na Madeira e a bezana lhe deu para dizer que o PSD era o partido mais português e que na hora das decisões caramba que só ele as sabia tomar. Desde então apareceu a Teresa Morais a inventar mortos e o Hugo Soares a dizer que o armário de Costa estava cheio de cadáveres não contabilizados como vítimas do Estado gerido pela geringonça.

Como Passos não apareceu ainda com os burrinhos na areia da Manta Rota e, tanto quanto se sabe, ainda não foi andar por aí, há forte motivos de que tenha ido em busca de cadáveres perdidos ou de suicidas pendurados nas árvores em consequência da ausência de António Costa. Com tantos incêndios é possível que o desgraçado tenha sido ele próprio uma das vítimas por contabilizar e só isso explica que tenha desaparecido, entregando o partido ao cuidado daquele senhor com umas faces tão rosadas e uma linguagem tão primária, que faz lembrar um taberneiro.

Não, Passos não desapareceu, é uma pena, mas deve estar bem de saúde. O que Passos está fazendo é algo tão sinistro como inventar vítimas de suicídios. Ainda que não seja grande coisa a experiência de governante deve ter sido suficiente para saber que a investigação não é competência do governo e se mandou a Teresa ou o taberneiro falar de listas de mortos foi apenas para enganar o país. É por isso que anda desaparecido, para não dar a cara pela manobra suja que promoveu.

Aquilo a que o país tem assistido é a manobra política mais suja e asquerosa a que o país assistiu, foi Passos Coelho que a concebeu, que a tem dirigido e é por isso que tem estes desaparecimentos intermitentes, para que a sua imagem não fique associada ao oportunismo sem limite, ao aproveitamento político do sofrimento alheio e ao deseja descarado de que se multipliquem as vítimas e os incêndios. Não é a primeira vez que um incêndio ajudou um canalha a chegar ao poder.

Nunca o PSD desceu tão baixo, ninguém vê Passos Coelho e a sua equipa dar qualquer apoio, mostrar o mais pequeno sentido de Estado. Eles não aparecem na desgraça para motivar os bombeiros, para confortar as populações. Passos aparece quando tudo passou para cobrar votos, para cobrar pelo sofrimento alheio.

É por isso que desaparece de vez em quando, enquanto manda a Teresa e o taberneiro fazer o papel triste aguarda por mais uma qualquer desgraça, que ocorra mais um roubo, que uma qualquer maluca em busca de “algo” apareça a inventar mortos, que um oportunista sem escrúpulos de uma qualquer Santa Casa lhe diga que sabe de suicídios. Há os que bem ou mal combatem os incêndios e dão a cara junto de quem sofre e há os que estão no conforto da sua escassa esperando que a desgraça alheia os ajude nas eleições.”




terça-feira, 18 de julho de 2017

DAS MINHAS CONVERSAS POR E-MAIL (7)



[…] quero mostrar-te um pequeno vídeo que gravei, ontem, do Jornal da Tarde da RTP 1.

Tenho que me revoltar, só não sei contra quem; isto é: não sei se hei-de responsabilizar o ensino nas nossas escolas – que não preparam correcta e conveniente os futuros profissionais de informação –, se, mais uma vez, responsabilizar os “manda-chuvas” dos órgãos de comunicação por fazerem com que os seus profissionais usem terminologia alimentadora da abundante iliteracia deste nosso povo.

A pergunta que faço é (cerca dos 19 segundos de vídeo) o que entende a “jornalista” por “latifúndio”?

Não é, certamente, o mesmo que eu e do que consta nos nossos dicionários. Latifúndio é uma propriedade rural de grande dimensão (geralmente de pouco rendimento), e o problema do interior montanhoso é a floresta e o minifúndio.

Não me vou alargar mais... é triste a impreparação dos jovens jornalistas; é alarmante.

É certo que têm de praticar para atingirem o caminho da excelência. O que quero referir, também, e principalmente, é a falta de responsabilidade dos orientadores dos estágios e dos interesses pouco confessáveis dos gestores – administração, directores, editores, etc.

[…]




quinta-feira, 22 de junho de 2017

VALE TUDO



Para quem ainda não acredita na manipulação da informação.
Contributo para compreender a ética deontológica do jornalismo em Portugal.

Percebe-se, agora, como se consegue ter no ar, durante mais de uma hora, jornalistas e comentadores a falar da queda de um avião, sem sequer confirmarem o desastre. A sede de sangue é tanta que nem se confirma a origem ou a veracidade da notícia.

Qual o objectivo?




«Nos últimos dias, à semelhança de toda a imprensa espanhola, o El Mundo (Espanha) tem publicado inúmeras notícias sobre o incêndio de Pedrógão Grande. Mas ao contrário da generalidade dos jornais, como o El Pais e outros que o têm feito de forma neutra, o El Mundo tem publicado textos, sem excepção, que demonstram uma orientação claramente anti-governamental e que procuram atribuir responsabilidades a António Costa, Ministros e autoridades portuguesas.

Alguns exemplos: “Caos no maior incêndio da história de Portugal: 64 mortos, um avião-fantasma e 27 aldeias evacuadas.”, “gestão desastrosa da tragédia”, "A evidente falta de coordenação entre as autoridades, provocou uma enxurrada de críticas à gestão do desastre por parte do Governo do primeiro-ministro António Costa, e em particular da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, a menos de quatro meses das eleições legislativas.”

O caso atinge mesmo proporções políticas colossais. Não só é sugerido que o caso pode fazer cair ministros e até todo o governo, sugere ainda que pode mesmo “pôr fim à carreira política de António Costa.” É este o clima que o El Mundo diz que se vive em Portugal.

A torrente de notícias duras e o tom crítico não tardaram a chegar a Portugal, e a imprensa portuguesa, na sua maioria, deu eco às críticas do El Mundo: Sábado, SIC Notícias, Jornal Económico, Observador, Expresso, Correio da Manhã são exemplos de órgãos que foram publicando notícias sobre aquelas notícias. Casos destes são frequentes: recorrer à imprensa internacional para validar posições sobre questões internas; ver o que “o que se anda a dizer de nós lá fora” e, se disserem mal, há quase automaticamente um enorme potencial mediático.

O autor de todos estes textos do El Mundo é sempre o mesmo: Sebastião Pereira. E é justamente aqui que o problema começa. Até ao último Sábado, Sebastião Pereira nunca tinha escrito um único texto no El Mundo ou em qualquer outro órgão de comunicação social português ou espanhol. Uma conclusão que resulta de uma pesquisa em todos os arquivos online. Não há também qualquer registo com o nome de Sebastião Pereira na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), a única instituição que pode habilitar jornalistas portugueses a exercer a profissão em Portugal. Nas redes sociais, nas escolas de jornalismo e entre jornalistas que estiveram no local do incêndio, ninguém sabe ou ouviu falar de tal nome.

Segundo o El Mundo, Sebastião Pereira é um freelancer a actuar em Lisboa, que, no Sábado, se ofereceu directamente ao jornal para fazer a cobertura dos incêndios florestais de Pedrógão Grande, aproveitando para isso o facto de já estar pela zona.

É este o estranhíssimo caso de Sebastião Pereira, o jornalista-fantasma.

Neste momento, e depois de investirmos algumas horas no assunto, podemos afirmar com segurança que o "jornalista português Sebastião Pereira" não existe, logo:

1. Ou Sebastião Pereira não é jornalista e, usando o seu nome próprio ou um pseudónimo, enganou um dos maiores jornais espanhóis e a imprensa portuguesa foi de arrasto num enorme logro.

2. Ou Sebastião Pereira é um jornalista português com carteira (ou carteira de estagiário) que está a usar um pseudónimo para dissimular a sua verdadeira identidade (na consciência, talvez, de que a verdadeira identidade cortaria a corrente mediática que se formou e que deu origem às notícias em Portugal)

3. Ou o El Mundo está a enganar todos os seus leitores e não contratou nenhum jornalista, estando apenas a reproduzir textos de outros órgãos, criando a assinatura de uma personagem fictícia.

Em qualquer das hipóteses, o caso é gravíssimo por várias razões. Desde logo, porque podemos já dizer que grande parte da imprensa portuguesa foi caixa de ressonância de uma notícia que tem, no mínimo, um problema de consistência enorme no plano da autoria. Mas pode ainda ser mais grave, dependendo do que vier a saber-se a partir deste preciso momento.

Entendemos que o El Mundo tem de dar explicações sobre este caso, identificando inequivocamente Sebastião Pereira. Tem de dar explicações urgentes. É nesse sentido que propomos a todos os nossos seguidores que nos ajudem a contactar Paco Rosell (Diretor) e Silvia Roman (Jefa Sección Internacional), para que ambos se pronunciem sobre o que se está a passar.




sábado, 6 de maio de 2017

INTOLERÂNCIA





Temos, cada vez mais, educadores do povo… intolerantes!

Critica-se o uso do véu islamita, mas condescende-se com o hábito das freiras. Há uma quantidade de gente – os especialistas da generalidade – conhecedora de todas as matérias; essas matérias poderão ir da simples discussão do materialismo dialéctico e ideológico à mais profunda análise teológica relativa a qualquer religião, mesmo sem a conhecer e sem saber ou respeitar o mais elementar princípio de consideração por quem nos rodeia. Conheça ou não os assuntos em discussão, têm sempre uma opinião a transmitir e uma verdade a defender – é sempre a oportunidade de opinarem.

Pior que um sofista, é um sofista intolerante.

Numa perspectiva de diálogo e respeito por quem connosco convive, deveríamos estar do lado de quem busca a verdade, e ter a humildade de quem quer saber e conhecer.

Quando, por um lado, nos confrontamos com religiões que estão em maioria, naturalmente aceitamo-las; se, pelo contrário, a religião se quedar por uma minoria, deveria haver, pelo menos, a intenção de respeitá-las.

Não pretendo perceber ou defender verdades religiosas “absolutas”, mas, tão-só, poder compreender as razões que eventualmente estarão por de trás de quem as segue. Não quero vestir a roupa de quem necessita de um rótulo de isenção (como aqueles que se afirmam agnósticos, para discutirem tendenciosamente a religião, imbuídos de aparente independência) e, por isso, não vou dizer se sou agnóstico, se sou ateu ou, simplesmente, se sou um confesso religioso.

Eis porque gostaria, na minha humilde ânsia de esclarecer e ser esclarecido, deixar à consideração o brilhante texto do Professor Dr. P.e Anselmo Borges, publicado, a 5 de Maio de 2017, no DN, que, sendo padre é acusado por muitos ateus, crentes e agnósticos de não se manifestar suficientemente “à altura daquela igreja tradicional e pré-conciliar”:

«1 - Um problema maior deste tempo são a pressa, a imediatidade, a fragmentação. Alguém pára para pensar, para verdadeiramente se informar, reflectir? Alguém lê livros? Sim, livros? Porque um livro, quando é bom, dá que pensar, e tem princípio e meio e fim e aberturas para lá dele e é preciso dialogar com ele e os seus pressupostos e os seus horizontes. Mesmo num jornal, lê-se a notícia toda ou só o título? Afinal, um dos grandes perigos de hoje é que se vive de flashes, de impressões, na vertigem de um tsunami de informações e opiniões dispersas, intoxicantes.

No passado dia 14 de Abril, o jornal Expresso titulava na primeira página: "É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima" (Anselmo Borges). E remetia para uma entrevista na página 22. É claro que quem só leu este título ficou enganado. É verdade que eu disse aquilo. Mas quem foi ler a entrevista? Quem leu encontrou o que é fundamental: a necessária distinção entre "aparição" e "visão": "Posso ser um bom católico e não acreditar em Fátima porque não é dogma. Não me repugna, contudo, que as crianças, os chamados três pastorinhos, tenham tido uma experiência religiosa, mas à maneira de crianças e dentro dos esquemas religiosos da altura. É preciso também distinguir aparições de visões. É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima. Uma aparição é algo objectivo. Uma experiência religiosa interior é outra realidade, é uma visão, o que não significa necessariamente um delírio, mas é subjectivo. É preciso fazer esta distinção."

Como já aqui expliquei, é evidente que Maria não apareceu fisicamente em Fátima, pois o crente na vida plena e eterna em Deus sabe que essa vida é uma nova criação, para lá do espaço e do tempo; não é segundo o modo da vida neste mundo. Mesmo a ressurreição de Jesus não é a reanimação do cadáver, é evidente, e, por isso, está para lá das manifestações físico-empíricas. Eu acredito na vida eterna e que Jesus está vivo em Deus. Como é? Ninguém sabe. As grandes experiências, as que decidem da vida e da morte e do sentido da existência e da história, são interiores. É neste dinamismo que estão as experiências da fé religiosa, mesmo se – a experiência nunca é pura, nua – se dão no quadro de esquemas, figuras e imagens interpretativos, segundo as situações, os tempos e os contextos. O referente – pólo objectivo – é sempre o mesmo: o Mistério, o Sagrado, Deus, Presença transcendente-imanente, que o crente – pólo subjectivo – experiencia como Fundamento e Fonte de salvação.

Percebe-se então que há experiências religiosas melhores e outras menos boas. E lá está na entrevista: “E por isso digo que é necessário evangelizar Fátima, ou seja, trazer uma notícia boa. Porque mesmo para aquelas crianças aquela não foi uma notícia boa: que mãe mostraria o inferno a uma criança?

2 - Qual é o núcleo da mensagem de Fátima? Em primeiro lugar, a oração. É uma grande mensagem? É. Para crentes e não crentes. Quem não precisa de rezar? Não necessariamente dizendo orações, embora os cristãos tenham a oração essencial que Jesus ensinou: “o pai-nosso”, onde está o núcleo da vida: a ligação à Transcendência, que é Amor; que o Reino de Deus venha: o Reino da verdade, da justiça, da dignidade livre e da liberdade na dignidade para todos e que lutemos por isso; a gratidão face ao milagre exaltante da Vida; o pão para todos; o milagre do perdão; a atenção ao essencial da vida, para se não cair na tentação da desgraça, do mal que fazemos a próprios e aos outros. A oração implica parar para escutar o silêncio e o que só no silêncio se pode ouvir: a voz da consciência e da dignidade, meditar, descer ao mais fundo de si, lá onde se encontra a ligação com a Fonte, donde tudo vem e onde tudo se religa e se faz a experiência do transtempo, para se poder viver no tempo sem se afundar na dispersão e no vazio.

A outra mensagem: “Fazei sacrifício e penitência.” E aquelas crianças até a pouca comida que tinham davam às ovelhas pela conversão dos pecadores.

Fátima precisa de ser evangelizada. Evangelho quer dizer notícia boa e felicitante, mas, frequentemente, como bem viu Nietzsche, o que se anunciou foi um Disangelho: uma notícia desgraçada e que arrastou consigo imensa infelicidade. No Evangelho segundo São Marcos, Jesus inicia a sua vida pública, proclamando: “Metanoiete”, cuja tradução normalmente é: “Fazei penitência”, mas realmente o que lá está é: mudai de mentalidade, de modo de pensar; portanto, mudai de vida, de mentalidade, de atitude, e acreditai no Evangelho. Jesus anunciava: “Ide aprender o que isto quer dizer: Deus não quer sacrifícios, mas justiça e misericórdia.” O que Jesus declarava era uma boa-nova: Deus é Amor, Fonte de vida, Liberdade criadora, que quer a vossa felicidade. “Não tenhais medo”, é outra palavra constante de Jesus. Mas, realmente, o que se pregou muitas vezes foi um deus da tristeza, do medo, do terror, chegando-se ao limite de pregar que Deus precisou da morte do próprio Filho para se reconciliar com a humanidade. Foi deste deus que Nietzsche proclamou a morte, porque perante um deus assim só se pode desejar que morra.

É completamente diferente o que está no Evangelho. Jesus não foi morto para aplacar a ira de Deus, Ele entregou-se à morte e morte de cruz para dar testemunho da Verdade e do Amor: o único interesse de Deus é que os homens e as mulheres, todos, sejam plenamente realizados e felizes. Esse é o sentido do sacrifício: não o sacrifício pelo sacrifício, mas o sacrifício que traz vida. O sacrifício pelo sacrifício não vale nada, mas, por outro lado, sem sacrifício, nada de grande, de verdadeiramente valioso, se realiza. “Mudai de mentalidade”: batei-vos pela vida, pela justiça, pela paz, pela felicidade, pelos direitos e pela dignidade divina de cada homem e de cada mulher, de todos. Sacrificai-vos por isso. É o que Deus quer e o que vale a pena. Para sempre.»




quinta-feira, 4 de maio de 2017

PASSOS, O RESPEITADOR


“Como é que uma sociedade com transparência e maturidade democrática pode conferir tamanhos poderes a alguém que não foi escrutinado democraticamente” [Passos Coelho]

“Se estão disponíveis para serem juízes do TC, têm que estar disponíveis para serem objecto de crítica jurídica e política.” [Teresa Leal Coelho]

“O escrutínio político deve ser feito denunciando aquilo que são as eventuais contradições, aquilo que são as obscuridades eventuais dos acórdãos do Tribunal Constitucional.” [Teresa Leal Coelho]

É uma interpretação ideológica da Constituição que vicia o princípio da alternância democrática, que condiciona a liberdade de ponderação do legislador e que manifestamente não compete ao TC.” [Teresa Leal Coelho]



Se procurarmos no Google encontramos dezenas de posições de personalidades do PSD e em particular de Passos Coelho e da sua vice-presidente criticando, condicionando ou pressionando os juízes do Tribunal Constitucional. Este PSD tem tantas semelhanças com os clubes de futebol que se diria que os responsáveis deste partido se comportam nesta matéria como os líderes de claques de futebol, mais um pouco e pareceriam jogadores do Canelas.

Mas em relação ao Conselho de Finanças Públicas já são grandes defensores da independência, ninguém pode questionar a independência, a capacidade técnica ou o critério de escolha. O governo deve comer e calar. E se este órgão mantiver uma oposição permanente ao governo com base em falsas previsões e partindo de pressupostos ideológicos, o governo deve comer e calar.

Não está em causa comparar o Tribunal Constitucional com o Conselho de Finanças Públicas, porque em matéria de importância, rigor e honestidade intelectual os factos explicam as diferenças. Mas criticar um órgão cujos membros são escrutinados por uma escolha feita pelo parlamento, com um obscuro conselho cujos membros são propostos por um funcionário do Banco de Portugal e por um tribunal constituído por juízes escolhidos por um concurso de funcionários, para defender a independência do CFP como se estivesse acima de todos os órgãos de soberania é ridículo.

Temos um presidente do PSD cujo respeito institucional pelos órgãos de soberania está abaixo de meros conselhos não sei do quê, um senhor que não respeitava as decisões do TC, mas agora quer que o país engula todas as previsões erradas do CFP.

Negritos, nossos.


domingo, 9 de abril de 2017

A Bíblia em praça pública




O projecto de Frederico Lourenço, assumido pela Quetzal, não se limita a uma nova tradução do Novo Testamento, mas à tradução de toda a Bíblia Grega, judaica e cristã.

1. Como escreveu, em 2016, o Prof. José Augusto Ramos, o universo cultural, editorial, científico e académico português foi recentemente presenteado com o aparecimento do primeiro volume de uma tradução da Bíblia grega, conceito que nos tem sido estranho, desde há muitos séculos[1]. Este ano, nos finais de Março, Frederico Lourenço inundou todas as livrarias com o segundo volume da tradução da Bíblia grega, o Novo Testamento completo, escrito há quase 2000 anos, cujo original é irrecuperável. Esta tradução está baseada no texto fixado por Nestle-Aland[2].
Para F. Lourenço, a leitura comparativa dos evangelhos canónicos e dos restos que nos chegaram dos apócrifos não deixa qualquer dúvida quanto à imprescindibilidade de Marcos, Mateus, Lucas e João, talvez os livros mais extraordinários da História da Humanidade.
Um padre, espantado com este fenómeno, perguntou-me: mas esse tradutor é padre? Quando lhe respondi que não era padre nem ex-padre, não era católico nem protestante e que neste trabalho prescinde, metodologicamente, de pressupostos religiosos, mostrou-se desconfiado. Aí há gato!
O que há, de facto, é talento, competência e muito trabalho. Convidei esse clérigo apreensivo a ler o currículo do tradutor que vem nas capas de ambos os volumes e acrescentei o meu pressentimento: com esta aparição, Frederico Lourenço e os responsáveis da Quetzal Editores vão alterar o clima cultural da Bíblia, no nosso país. Não esperam canonizações, mas merecem avaliações críticas competentes[3].
Pensar que o estudo da Bíblia e as suas traduções só merecem confiança se forem obra de clérigos e de editoras católicas submetidos ao Imprimatur episcopal é supor que a Bíblia é propriedade privada de empresas confessionais. Que os responsáveis das comunidades católicas zelem pela formação bíblica dos seus membros e pelas expressões da fé cristã é o mínimo que se lhes pode pedir. Infelizmente, nem sempre cumprem esta missão.
Ninguém tem o monopólio da Bíblia e só há vantagens em que seja reconhecida e trabalhada como o “Livro dos livros”, a expressão das raízes judeo-cristãs da civilização ocidental. Há muito a fazer para se tornar parte activa da cultura portuguesa, nas suas diversas expressões. Criticam-se, e com razão, as correntes sociais, políticas e culturais que desejam fechar as religiões nas respectivas sacristias. Mas seria lamentável que as sacristias amuassem ao ver essa literatura religiosa estudada e debatida com toda a liberdade, no espaço público.
Herculano Alves reuniu, numa obra muito útil, os Documentos da Igreja sobre a Bíblia, desde o ano 160 a 2010[4]. No começo deste ano, foi lançado pela Biblioteca Dominicana o testemunho incontornável de Marie-Joseph Lagrange, O.P., sobre os tormentos que sofreu do Vaticano e das invejas eclesiásticas organizadas para impedir as inovadoras investigações e publicações científicas da Escola Bíblica de Jerusalém, nos finais do século XIX e nos primeiros 30 anos do século XX[5]. Quem comparar a miséria cultural dessa situação com o documento da Comissão Pontifícia Bíblica, de 15 de Abril de 1993[6], pode ter a impressão de que não pertencem à mesma Igreja.
Não reconhecer a importância de colocar a Bíblia no espaço público, segundo as exigências culturais do nosso tempo, só pode alimentar a suspeita de que a razão crítica é inimiga da religião, das suas linguagens e das suas práticas.
2. O projecto de Frederico Lourenço, assumido pela Quetzal, não se limita a uma nova tradução do Novo Testamento, do qual já existem várias, de diversos estilos, mas à tradução de toda a Bíblia grega, judaica e cristã. A Bíblia judaica e a Bíblia hebraica não se identificam, como se a grega não fosse, também, judaica. A grega, designada como Septuaginta (LXX), é a primeira tradução da Bíblia[7] e o seu nome designa a tradução da Torah hebraica para o grego, realizada em Alexandria durante o reinado de Ptolomeu II (285-246 a.C.).
Segundo a lenda, setenta sábios de Jerusalém, conhecedores do hebraico e do grego, partiram para Alexandria, cidade com grande população judaica, mas onde se falava sobretudo o grego. Cada um tinha o seu quarto particular e a obrigação de traduzir as Escrituras. Começaram todos ao mesmo tempo e terminaram todos ao fim de setenta dias. Ao conferi-las, verificaram que todos tinham traduzido da mesma maneira. Para lenda e milagre não está mal.
A dita versão constituiu um acontecimento cultural sem precedentes e a iniciativa literária mais importante para os anais da civilização. Pela primeira vez, a sabedoria de Israel passava de uma língua semita para outra indo-europeia e, por aí, ao mundo ocidental.
3. Quando, séculos mais tarde, a LXX foi adoptada pelas primeiras comunidades cristãs, como a Bíblia oficial, acompanhou a expansão do cristianismo, tanto no Oriente como no Ocidente.
A partir do séc. V d.C., a LXX foi destronada, no Ocidente, pela tradução de S. Jerónimo para latim, denominada a Vulgata. Esta versão dominou a cultura ocidental durante a Idade Média. Foi declarada como autêntica, isto é, fiável em matéria de fé e costumes, pelo Concílio de Trento (1546). Na Igreja Ortodoxa, a Bíblia grega manteve-se como Bíblia oficial ou canónica até aos nossos dias.
Outro foi o rumo das traduções da Bíblia na Reforma. Espero que, entre nós, o nome de Lutero tenha deixado de ser considerado um insulto.





[1] Cadmo 25 (2016) 101-113. Cf. também de José Augusto Ramos, Traduções Portuguesas da Bíblia Transversalidades Linguístico-Culturais em Tarefas de Hoje, Gaudium Sciendi, Nº 3, Janeiro 2012, pp 124-146
[2] Entre 1898 e 2012 atingiu 28 edições
[3] Cf. José Augusto Ramos (Cadmo 25 (2016) 101-113); Isaías Hipólito (Brotéria 184 (2017) 205-225)
[4] Documentos da Igreja sobre a Bíblia (160-2010), Difusora Bíblica, 2011
[5] Marie-Joseph Lagrange, O.P., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia, Biblioteca Dominicana, Coimbra, Tenacitas, 2017
[6] A Interpretação da Bíblia na Igreja, S. G. E., Rei dos Livros, 1994
[7] Cf. Natalio Fernández Marcos, Septuaginta. La Biblia griega de judíos y cristianos, Sígueme, Salamanca, 2008.