Depois de ler, não pude deixar de partilhar este brilhante
texto de Frei Bento Domingues, publicado no “Público” de 24 de Setembro de 2017.
Frei Bento Domingues, O.P., de seu nome Basílio de Jesus
Gonçalves Domingues, é um religioso da Ordem dos Pregadores, por muitos
considerado como um dos maiores teólogos portugueses.
Nasceu a 13 de Agosto de 1934 (83 anos).
«
Não é a um Deus distraído que
o Papa Francisco reza. Reza para diminuir o mundo dos distraídos.
1. Não têm conta as vezes
que me fizeram, e fazem, a pergunta do título desta crónica. Sei que não tenho
o exclusivo.
Não escondo que me divertem
as pessoas religiosas e teólogas que dão a ideia – pelo que dizem e escrevem,
pelo que aconselham ou mandam – que conhecem a vontade de Deus e os seus
misteriosos caminhos. A tudo dizem: foi a vontade de Deus, mesmo quando essa
expressão, pretensamente piedosa, é o pior insulto que Lhe podem fazer.
Por outro lado, são,
por vezes, as mesmas pessoas que, pelas suas repetidas e abundantes orações,
supõem que Deus ande mal-informado. As chamadas orações dos fiéis nas
Celebrações Eucarísticas, mais ou menos gemidas, tentam lembrar a Jesus a sua
responsabilidade pela péssima situação mundial.
Parece que todas as
religiões, ou a maioria, têm fórmulas e livros de orações. Basta ir ao Google
e, a partir da palavra oração, podemos ficar minimamente referenciados acerca
desse mundo, ora sublime ora ridículo.
A nossa ligação
fervorosa a Deus deveria estar atenta à nossa radical ignorância. Nunca me
posso esquecer que S. Tomás de Aquino, depois de expor a sua epistemologia
teológica e de apresentar as razões que tinha para afirmar que Deus existe,
empenhou-se em mostrar, imediatamente, que não podemos saber como é Deus. A
teologia dele é, sobretudo, uma luta contra as idolatrias que se insinuam em
todas as atitudes e discursos religiosos.
Julgo que a religião –
embora seja uma palavra de origem latina – nasce da consciência, mais ou menos
explicita, do ser humano como realidade limitada. Precisa do outro para nascer,
para crescer, para viver e para morrer. Não é auto-suficiente. É, por natureza,
carente de cultura e de afectos. É uma realidade em permanente processo. Vai
sendo através dos mil contactos cultivados ao longo da vida. É,
estruturalmente, um ser aberto. Neste mundo multicultural e multirreligioso
desenvolve-se bem ou mal, na recusa ou na aceitação. Quando se fecha aos
outros, perde-se e afoga-se em si mesmo.
As boas relações
humanas são as de acolhimento e cooperação. As más são as de dominação
psicológica, económica, política e religiosa. Por isso, a pergunta mais
sagrada, mais religiosa, em todas as situações, talvez seja esta: em que posso
ajudar?
Não é por acaso que a
primeira grande pergunta que Deus faz, logo no Génesis [1], seja esta: que
fizeste ao teu irmão, e seja também a última que julgará a nossa história,
segundo o Evangelho de S. Mateus [2].
Mas, então, devemos ou
não rezar?
2. Não faltam, mesmo no
Novo Testamento, recomendações de que devemos rezar sempre e em toda a parte.
Não de qualquer maneira. Nem foi a primeira preocupação de Jesus. Consta, no
Evangelho de S. Lucas, que os discípulos se sentiam um grupo um bocado
abandonado, nesse aspecto. “Estando [Jesus] num certo lugar a rezar, ao
terminar, um dos seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar como João
ensinou aos seus discípulos.” [3] Daí, resultou uma longa conversa e uma
parábola que termina de forma paradoxal: a única coisa garantida é que o Pai
dos Céus dará o seu Espírito aos que o pedirem. S. Mateus põe na boca de Jesus
a recomendação: “Nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os
gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não
sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes necessidade, antes de
lho pedirdes.” De facto, deixou-nos apenas pistas muito gerais, no Pai-Nosso
[4].
Estas indicações
básicas atribuídas a Jesus deveriam merecer mais atenção. A Liturgia das Horas,
rezadas em coro em muitas congregações religiosas, serve-se da recitação dos
Salmos do Antigo Testamento. É precisa uma grande dose de paciência para
aguentar a divisão entre o povo de Deus e os outros povos que não sabemos de
quem são, geralmente inimigos. Esse Deus tem o encargo de defender e ajudar o
seu povo e de atacar os outros povos. É um mundo pouco edificante de amigos e
inimigos. É preciso, depois de Jesus Cristo, estar sempre a fazer descontos na
oração.
Fazem parte de
cenários em que se põe na boca do Senhor, Deus de Israel, uma narrativa na
qual, depois de muitas bem-feitorias ao seu povo, que, finalmente, atravessou o
Jordão e chegou a Jericó, faz esta declaração fantástica, coroa de muitas
outras: “Combateram contra vós os que dominavam a cidade – os amorreus e os
perezeus, os cananeus e os ititas, os girgasitas, os hevitas e os jebuseus –
mas Eu entreguei-os nas vossas mãos. [...] Não foi com a vossa espada nem com o
vosso arco que tudo isto foi feito. Dei-vos uma terra que não cultivastes,
cidades que não construístes e onde agora habitais, vinhas e olivais que não
plantastes e de que vos alimentais.” [5]
Pode um cristão rezar
a um Deus destes?
3. Anda o Papa Francisco
a dizer que não se pode matar em nome de Deus e, depois, louvá-Lo por ser um
terrorista, porque eterno é o seu amor?
O diálogo
inter-religioso, para não ser um teatro de mau-gosto, deve incluir a crítica
das expressões religiosas que ofendem a Divindade maltratando os seres humanos.
Em Assis, já diversas
vezes, os representantes de diferentes religiões foram rezar juntos. Nenhum tem
o direito de criticar a forma de rezar dos outros, mas todos se deveriam sentir
responsabilizados a contribuir, no âmbito da sua religião, para reverem as
respectivas formas de rezar.
Por outro lado, se o
ser humano é religioso pela interpretação que faz do seu limite, tem de cuidar
de não transpor para Deus a sua responsabilidade. Quando se diz, de forma
metafórica, que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, isso
significa que o ser humano, por ser livre, é responsável pelo seu mundo, pela
casa comum.
O Papa Francisco não
se cansa de repetir que já estamos, de modo fragmentado, na terceira guerra
mundial. Existem sistemas económicos que devem fazer a guerra para sobreviver.
Ao fabricar e vender armas sacrificam, nos balanços económicos, o ser humano no
altar do deus dinheiro.
Gosto da sua forma de
rezar: Queridas irmãs e irmãos, eleva-se de todos os lugares da terra, de cada
povo, de cada coração e dos movimentos populares, o grito da paz: guerra, nunca
mais! [6]
Não é a um Deus
distraído que ele reza. Reza para diminuir o mundo dos distraídos.
_________________
[1] Gn 4, 1-15
[2] Mt 25, 31-46
[3] Lc 11, 1-13
[4] Mt 6, 5-15
[5] Cf. Js 24, 1-13
[6] Politique et société, du Pape François (Rencontres
avec Dominique Wolton), Editions de L’Observatoire/Humensis, 2017, p. 11.
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