quarta-feira, 29 de julho de 2015

APARELHISMO VS. DIGNIDADE




Em conversa com um amigo, citei uma frase de Elísio Estanque, do seu artigo publicado no Público, hoje, 29 de Julho, com o título “Social-democracia e aparelhismo”: “A força do aparelhismo tem como contraponto o vazio da política. Mas a génese disso reside numa cultura difusa, enraizada na sociedade, onde o tráfico de influências prevalece sobre os valores democráticos e a reverência ao poder sobre a autonomia individual”. E acrescentei: Espero que o povo já esteja farto das mesmas caras que se pavoneiam pelo parlamento, sem nada produzirem, quais paus-mandados dos líderes partidários. Em suma, sem carácter e sem dignidade… salvo raras e honrosas excepções.

O meu amigo retorquiu-me: “Não te iludas…! O povo não vota nas pessoas, nem nos programas; vota no clube, no partido… Salvo raríssimas e honrosas excepções, como tu dizes… O aspecto político e social não conta nem interessa ao aparelhismo… Interessam vassalos bajuladores dos Senhores do Partido…”


quinta-feira, 23 de julho de 2015

TESTES FATAIS


A Europa transformou-se num laboratório do futuro. O que nele se experimenta deve causar preocupação a qualquer democrata e a qualquer pessoa de esquerda.



Boaventura de Sousa Santos



A Europa transformou-se num laboratório do futuro. O que nele se experimenta deve causar preocupação a qualquer democrata e, muito mais, a qualquer pessoa de esquerda. Duas experiências estão em curso em ambiente laboratorial, isto é, supostamente controlado. A primeira experiência é um teste de stress à democracia. A hipótese que orienta o teste é a seguinte: a deliberação democrática de um país forte pode sobrepor-se antidemocraticamente à deliberação democrática de um país fraco sem que tal altere a normalidade da vida política europeia. As condições para o êxito desta experiência são três: controlar a opinião pública de modo a que os interesses nacionais do país mais forte sejam convertidos no interesse comum da zona euro; dispor de um conjunto de instituições não eleitas (Eurogrupo, BCE, FMI, Comissão Europeia) capazes de neutralizar e punir qualquer deliberação democrática que desobedeça ao diktat[1] do país dominante; demonizar o país mais fraco de modo a que não suscite nenhuma simpatia junto dos eleitores dos restantes países europeus, especialmente junto dos eleitores dos países candidatos a desobedecer. A Grécia é a cobaia desta tenebrosa experiência. Trata-se do segundo exercício de ocupação colonial do século XXI (o primeiro foi a Missão de Estabilização da ONU no Haiti a partir de 2004), um colonialismo de tipo novo, executado com o consentimento do país ocupado, ainda que sob inaudita chantagem. E, tal como o velho colonialismo, justificado como servindo o melhor interesse do país ocupado. A experiência está em curso e os resultados do teste de stress são incertos. Ao contrário dos laboratórios, as sociedades não são ambientes controlados, por maior que seja a pressão para os controlar. Uma coisa é certa, depois desta experiência, qualquer que seja o seu resultado, a Europa não será mais a Europa da paz, da coesão social e da democracia. Será o epicentro de um novo despotismo ocidental, rivalizando em crueldade com o despotismo oriental estudado por Karl Marx e Max Weber.

A segunda experiência em curso é um exercício sobre a solução final para a esquerda europeia. A hipótese que orienta esta experiência é a seguinte: não há lugar na Europa para a esquerda na medida em que esta reivindicar a existência de uma alternativa às políticas de austeridade impostas pelo país dominante. As condições para o êxito desta experiência são três. A primeira consiste em provocar a derrota preventiva dos partidos de esquerda punindo de maneira brutal o primeiro que tentar desobedecer. A segunda consiste em criar nos eleitores a ideia de que os partidos de esquerda não os representam. Até agora, a ideia de que "os representantes não nos representam" era uma bandeira do movimento dos indignados e do Occupy contra os partidos de direita e seus aliados. Depois de o Syriza ser forçado a beber o cálice da cicuta austeritária apesar do "não" do referendo grego que ele próprio apoiara, os eleitores serão levados a concluir que, afinal, também os partidos de esquerda não os representam. A terceira condição consiste em armadilhar a esquerda em falsas opções entre falsos Planos A e Planos B. Nos últimos anos, a esquerda dividiu-se entre os que pensam que é melhor permanecer no euro e os que pensam que é melhor sair do euro. Ilusão: nenhum país pode optar por sair ordenadamente do euro, mas, se desobedecer, será expulso e o caos desabará implacavelmente sobre ele. Passa-se o mesmo com a restruturação da dívida que até agora tanto dividiu a esquerda. Ilusão: a restruturação ocorrerá quando tal servir os interesses dos credores e é por isso que mais esta bandeira de alguma esquerda se transforma agora numa política do FMI.

Também os resultados desta experiência são incertos e pelas mesmas razões acima referidas. Uma coisa é certa: para sobreviver a esta experiência, a esquerda terá de se refundar para além do que é hoje imaginável. Tal envolverá muita coragem, muita audácia e muita criatividade.




[1] Exigência absoluta imposta pelo mais forte, sem outra justificação que não seja a força

sábado, 18 de julho de 2015

Revelar origem da dívida grega provocaria revolução financeira mundial, diz auditora


Por: Vanessa Martina Silva | São Paulo - 15/07/2015

Membro da comissão que auditou parte da dívida pública grega, Maria Lúcia Fattorelli questiona, em entrevista exclusiva a Opera Mundi: é 'ridículo' culpar Atenas pela crise europeia
A pressão realizada pelos credores europeus para que a Grécia aceitasse o acordo para um resgate financeiro foi, na verdade, uma tentativa de impedir que se conheçam as origens “ilegais e ilegítimas” da dívida, uma vez que isso provocaria “uma revolução no sistema financeiro mundial”. É o que defende Maria Lucia Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal, em entrevista exclusiva a Opera Mundi. Ela fez parte das primeiras atividades da comissão internacional que realizou a auditoria da dívida grega, a convite da presidente do Parlamento grego, Zoe Konstantopoulou.
As conclusões iniciais a que o levantamento do qual Fattorelli fez parte chegou nas primeiras sete semanas de investigação revelam que “os mecanismos inseridos nesses acordos [de resgate do país] eram para beneficiar os bancos e não a Grécia. (…) A questão é: por que eles [troika] têm que jogar tão pesado?”. Ela responde: “Porque a Grécia pode revelar o que está por trás. A tragédia da Grécia esconde o segredo dos bancos privados. Ela poderia colocar a nu as estratégias utilizadas para salvar bancos e colocar em risco toda zona do euro, toda a Europa”, aponta a também fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil.

Nilson Bastian/Câmara dos Deputados
Auditora aposentada da Receita Federal, Maria Lúcia Fattorelli participou do levantamento da dívida pública de Grécia e Equador

Fattorelli explica que no mesmo dia em que foi criado, em 2010, o plano de suporte à Grécia, a Comissão Europeia criou uma empresa privada em Luxemburgo e os países europeus se tornaram sócios da mesma, colocando garantias na ordem de 440 bilhões de euros, e que um ano depois chegaram à soma de 800 bilhões. A empresa, explica Fattorelli, serviu para “fazer o repasse de papéis podres dos bancos para os países, utilizando o sistema da dívida”. Paralelamente, também no mesmo dia, o Banco Central Europeu anuncia um programa de compra de papéis no mercado para ajudar bancos privados: “Isso é um escândalo. É ilegal, mas é colocado como se isso tivesse sido feito para salvar a Grécia”, aponta a economista.
“Eles poderiam vir a público denunciando o que já foi descoberto, as regularidades que já foram apuradas. Todos nós gostaríamos que a Grécia reagisse agora diante dessa camisa de força do euro, desse poder dado ao Banco Central Europeu, das  instituições acima dos países e toda essa situação financeira de dependência”, comenta a auditora, fazendo referência ao fato de que o sistema do euro impede que os países-membros exerçam uma política monetária independente.
Questionada sobre a possibilidade de os termos do acordo com a Grécia serem uma “punição política” ao premiê grego e também um recado aos demais países em dificuldades na Europa, como Portugal, Irlanda, Itália e Espanha, Fattorelli observa que essa é a estratégia que vem sendo adotada desde 2010. "A Grécia foi colocada sob os holofotes da grande mídia no mundo inteiro como se fosse a responsável pela crise Europeia. Isso é ridículo, porque quando você olha o tamanho da economia grega, em comparação com a europeia, o PIB da Grécia é em torno de 3% do europeu. Então, como 3% pode abalar 97%? Isso é uma criação e é absurdo que ninguém questione isso”, afirma.

Reestruturação da dívida
Apontada por Tsipras como uma vitória nas negociações com os credores, a reestruturação da dívida é, na opinião da auditora, contra indicada caso não tenha sido concluída a auditoria da dívida.
Fattorelli explica que se for feita neste momento, o país “vai reestruturar grande parte de uma dívida que deveria ser anulada. Antes de reestruturar, deveria ser concluída a auditoria para que se analise o que realmente deve ser reestruturado. Agora, como está, vão empacotar tudo junto: a parte ilegal e a ilegítima”, esclarece.

Agência Efe
Manifestantes protestaram nesta terça-feira (14/07) contra medidas de austeridade

Entre a dívida ilegal, ela aponta os quase 50 bilhões de euros usados para salvar os bancos nos últimos anos. “Isso não é dívida pública, isso é outra coisa. Deveria ser considerado um empréstimo aos bancos privados, não uma dívida pública do país”, destaca.

Perda da soberania
Após a assinatura do acordo por Tsipras, analistas e mesmo setores da esquerda grega avaliaram que a adoção das medidas caracteriza uma perda da soberania do país. Fattorelli discorda. Para ela, Atenas perdeu a soberania já em maio de 2010, quando foi assinado o primeiro pacote de resgate e a troika [conjunto de credores gregos formado por FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia] "passou a mandar lá".
"Inclusive, a lei vigente sobre esses acordos é a lei inglesa, não é a grega. Além disso, se a Grécia tiver que ir a algum tribunal, ficará submetida ou ao tribunal de Luxemburgo ou ao de Londres”, acrescenta Fattorelli, que considera essa situação jurídica "um abuso".

Agência Efe
 
Tsipras classificou acordo como 'mau acordo', no qual não crê, e disse ter lutado 'até o fim' pelo povo grego


Ela avalia, no entanto, que a oportunidade que os gregos tinham agora de retomar as rédeas sobre os rumos do país foi perdida. “O país está à venda desde que foram criados o fundo de estabilização para salvar os bancos e o fundo de privatização. Ambos determinados pelo FMI em 2010”.

‘Sistema é inviável’
A crise grega abre a possibilidade de que se discuta a fundo a questão do sistema da dívida, defende Fattorelli. No país helênico, os "bancos privados criaram derivativos em cima de derivativos. Papéis podres que estavam inundando seus balanços. Ou seja, eles estavam quebrados, mas foram considerados grandes demais para quebrar e continuaram com seus patrimônios intocáveis” Mas, quem está assumindo esse ônus são os países “e é um ônus que não tem fim”, aponta.

Agência Efe
Indigentes dormem nas ruas de Atenas

“O último dado conhecido do volume de derivativos tóxicos divulgado pelo BIS (Banco Central dos Bancos Centrais), em 2011, informava que o montante chegava a 11 PIBs mundiais. Então eu questiono: esse salvamento vai resolver alguma coisa? Não! Será somente o adiamento até uma nova crise. E aí o que vai ser feito depois?”, questiona.
Na verdade, esse sistema “além de não ter lógica está comprometendo o emprego real, está comprometendo a indústria, o comércio. Ou seja, toda a economia real está comprometida, assim como a vida das pessoas”. Ela ressalta, no entanto, que isso não ocorre só na Grécia: “olha no Brasil, o que está acontecendo [com o ajuste fiscal levado a cabo pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy]. É o mesmo esquema, o mesmo sistema da dívida atuando”.

Argentina e Equador
Para um melhor entendimento da crise grega, Fattorelli a comparou à que foi vivenciada pela Argentina em 2000: “depois de cumprir todas as privatizações que o FMI queria, o fundo deu as costas ao país e deixou espaço aberto para os bancos privados oferecerem o acordo. Eles colocaram juros equivalentes ao crescimento do PIB e como consequência, hoje a dívida argentina já é um problema novamente e não significou nenhum benefício aquilo [o receituário do FMI]. Além disso, o país também não fez a auditoria”.
Em 2008, o presidente equatoriano, Rafael Correa, anunciou que não pagaria parte da dívida externa do país, após a realização de uma auditoria, da qual Fattorelli participou. A diferença do pequeno país sul-americano para a Grécia, Argentina ou mesmo o Brasil é explicada pela economista: “Correa conseguiu enfrentar o sistema porque, como o Syriza, chegou ao poder sem financiamento privado, não chegou lá atrelado aos interesses dos financiadores. Se olharmos no site do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] do Brasil, quem financiou as campanhas presidenciais e legislativas foram os bancos privados e as grandes corporações”, aponta.
Ela conta também que o processo completo no Equador durou um ano e quatro meses. Além disso, o relatório foi submetido a um crivo jurídico nacional e internacional para garantir sua legitimidade.  
Outro ponto é que o Equador, que diminuiu em 70% o valor devido aos credores, tinha, segundo Fattorelli, dinheiro para recomprar a dívida: "Fez a proposta e honrou".
“O problema da Argentina [de 2000] é que não fez auditoria, chegou ao fundo do poço e quebrou. Já a Grécia, quando o Syriza chegou ao poder, já estava quebrada e dentro da camisa de força da estrutura da zona do euro, em que não tem moeda própria. Nesse aspecto, a situação grega é até pior do que a Argentina, que tinha moeda própria”, acrescenta.

Solução possível
Apesar das conclusões de Fattorelli, ela não considera que o acordo feito por Tsipras era o único possível: “Eles poderiam criar uma moeda paralela temporária — solução apontada por economistas famosos, inclusive — até resolver a situação. Se adotassem isso, fariam um bem a toda a humanidade. Mas prosseguir com este modelo suicida não tem futuro”.




sexta-feira, 10 de julho de 2015

ESTERCO DO DIABO: agências que impõem os programas de austeridade


De visita à Bolívia, o Papa Francisco fez fortes críticas às agências que impõem os programas de austeridade e, cintando um bispo do século IV, disse que o dinheiro e a busca desenfreada pelo mesmo é o "esterco do diabo".






Helena Bento escreveu esta quinta-feira (10 de Julho 2015), no Expresso, este pequeno apontamento que pauto de extraordinária importância:

Num longo discurso proferido na cidade de Santa Cruz, na Bolívia, perante milhares de apoiantes de movimentos populares, o Papa Francisco denunciou o "neocolonialismo das agências que impõem programas de austeridade" e apelou à instauração de uma "nova ordem mundial".

Segundo o Papa, este "neocolonialismo assume diferentes formas" e radica tanto nas corporações e agências de empréstimos, como na imposição de "medidas de austeridade" que prejudicam, sem excepção, "os trabalhadores e os pobres". Estes, defendeu, não devem, em situação alguma, abdicar da luta pelos seus "direitos sagrados": terra, trabalho e habitação.

Citando um bispo do século IV, disse que o dinheiro, e a busca desenfreada pelo mesmo, é o "esterco do diabo", e que os países mais pobres não podem ser reduzidos à condição de fornecedores de matérias-primas e trabalho barato para os países desenvolvidos.

O Papa Francisco aproveitou a visita ao país para pedir perdão pelos "crimes cometidos" pela Igreja Católica Romana contra os nativos americanos durante a "conquista da América" e apelou ao fim imediato do "genocídio de cristãos" (por ele descrito como uma "terceira guerra mundial") que tem ocorrido no Médio Oriente.

"Hoje, sentimo-nos consternados ao ver como no Oriente Médio e em outras partes do mundo muitos dos nossos irmãos e irmãs são perseguidos, torturados e assassinados por causa da sua fé em Jesus", disse Francisco, que falava no segundo Encontro Mundial de Movimentos Populares (o primeiro, no ano passado, foi acolhido pelo Vaticano).

(realces, sublinhados e ortografia antiga da minha responsabilidade)



terça-feira, 7 de julho de 2015

HOJE, ESTOU TRISTE




Habituados a estar rodeados de mal e morte todos os dias, tornámo-nos quase insensíveis à dor que nos rodeia; todavia, quando se relaciona com alguém com a grandeza discreta e silenciosa de Maria de Jesus Barroso, regressa-nos a sensibilidade humana que nunca nos deveria ter deixado e, então, sentimos e choramos.

Hoje é um dos dias que não devia ter existido.

Não me lembro de alguma vez ter discordado da sua actuação, quer na vida política quer na vida social. A independência serena e firme das suas convicções, ao longo de toda a sua vida, consolidou em mim uma admiração quase incomparável, que já nutri por muito poucas pessoas com dimensão idêntica.

Combatente pela liberdade – mulher coragem – com uma dignidade de que o país se deve orgulhar, deixa-nos um legado com uma dimensão cultural e cívica que é muito raro.

Dr.ª Maria Barroso, obrigado pelo exemplo de vida que nos legou!