Por: Vanessa Martina Silva |
São Paulo - 15/07/2015
Membro da comissão que auditou parte da dívida pública grega,
Maria Lúcia Fattorelli questiona, em entrevista exclusiva a Opera Mundi: é
'ridículo' culpar Atenas pela crise europeia
A pressão realizada pelos credores europeus para que a
Grécia aceitasse o acordo para um resgate financeiro foi, na verdade, uma
tentativa de impedir que se conheçam as origens “ilegais e ilegítimas” da
dívida, uma vez que isso provocaria “uma revolução no sistema financeiro
mundial”. É o que defende Maria Lucia Fattorelli, auditora aposentada da
Receita Federal, em entrevista exclusiva a Opera Mundi. Ela fez parte
das primeiras atividades da comissão internacional que realizou a auditoria da
dívida grega, a convite da presidente do Parlamento grego, Zoe Konstantopoulou.
As conclusões iniciais a que o levantamento do qual
Fattorelli fez parte chegou nas primeiras sete semanas de investigação revelam
que “os mecanismos inseridos nesses acordos [de resgate do país] eram para
beneficiar os bancos e não a Grécia. (…) A questão é: por que eles [troika] têm
que jogar tão pesado?”. Ela responde: “Porque a Grécia pode revelar o que está
por trás. A tragédia da Grécia esconde
o segredo dos bancos privados. Ela poderia colocar a nu as estratégias
utilizadas para salvar bancos e colocar em risco toda zona do euro, toda a
Europa”, aponta a também fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no
Brasil.
Nilson Bastian/Câmara dos Deputados
Auditora aposentada da Receita
Federal, Maria Lúcia Fattorelli participou do levantamento da dívida pública de
Grécia e Equador
Fattorelli explica que no mesmo dia em que foi criado, em
2010, o plano de suporte à Grécia, a Comissão Europeia criou uma empresa
privada em Luxemburgo e os países europeus se tornaram sócios da mesma,
colocando garantias na ordem de 440 bilhões de euros, e que um ano depois
chegaram à soma de 800 bilhões. A empresa, explica Fattorelli, serviu para
“fazer o repasse de papéis podres dos bancos para os países, utilizando o
sistema da dívida”. Paralelamente, também no mesmo dia, o Banco Central Europeu
anuncia um programa de compra de papéis no mercado para ajudar bancos privados:
“Isso é um escândalo. É ilegal, mas é colocado como se isso tivesse sido feito
para salvar a Grécia”, aponta a economista.
“Eles poderiam vir a público denunciando o que já foi
descoberto, as regularidades que já foram apuradas. Todos nós gostaríamos que a
Grécia reagisse agora diante dessa camisa de força do euro, desse poder dado ao
Banco Central Europeu, das instituições acima dos países e toda essa
situação financeira de dependência”, comenta a auditora, fazendo referência ao
fato de que o sistema do euro impede que os países-membros exerçam uma política
monetária independente.
Questionada sobre a possibilidade de os termos do acordo com
a Grécia serem uma “punição política” ao premiê grego e também um recado aos
demais países em dificuldades na Europa, como Portugal, Irlanda, Itália e
Espanha, Fattorelli observa que essa é a estratégia que vem sendo adotada desde
2010. "A Grécia foi colocada sob os holofotes da grande mídia no mundo
inteiro como se fosse a responsável pela crise Europeia. Isso é ridículo,
porque quando você olha o tamanho da economia grega, em comparação com a
europeia, o PIB da Grécia é em torno de 3% do europeu. Então, como 3% pode
abalar 97%? Isso é uma criação e é absurdo que ninguém questione isso”, afirma.
Reestruturação da dívida
Apontada por Tsipras como uma vitória nas negociações com os
credores, a reestruturação da dívida é, na opinião da auditora, contra indicada
caso não tenha sido concluída a auditoria da dívida.
Fattorelli explica que se for feita neste momento, o país
“vai reestruturar grande parte de uma dívida que deveria ser anulada. Antes de
reestruturar, deveria ser concluída a auditoria para que se analise o que
realmente deve ser reestruturado. Agora, como está, vão empacotar tudo junto: a
parte ilegal e a ilegítima”, esclarece.
Agência Efe
Manifestantes protestaram
nesta terça-feira (14/07) contra medidas de austeridade
Entre a dívida ilegal, ela aponta os quase 50 bilhões de
euros usados para salvar os bancos nos últimos anos. “Isso não é dívida
pública, isso é outra coisa. Deveria ser considerado um empréstimo aos bancos
privados, não uma dívida pública do país”, destaca.
Perda da soberania
Após a assinatura do acordo por Tsipras, analistas e mesmo
setores da esquerda grega avaliaram que a adoção das medidas caracteriza uma
perda da soberania do país. Fattorelli discorda. Para ela, Atenas perdeu a
soberania já em maio de 2010, quando foi assinado o primeiro pacote de resgate
e a troika [conjunto de credores gregos formado por FMI, Banco Central Europeu
e Comissão Europeia] "passou a mandar lá".
"Inclusive, a lei vigente sobre esses acordos é a lei
inglesa, não é a grega. Além disso, se a Grécia tiver que ir a algum tribunal,
ficará submetida ou ao tribunal de Luxemburgo ou ao de Londres”, acrescenta
Fattorelli, que considera essa situação jurídica "um abuso".
Agência Efe
Tsipras classificou acordo
como 'mau acordo', no qual não crê, e disse ter lutado 'até o fim' pelo povo
grego
Ela avalia, no entanto, que a oportunidade que os gregos
tinham agora de retomar as rédeas sobre os rumos do país foi perdida. “O país
está à venda desde que foram criados o fundo de estabilização para salvar os
bancos e o fundo de privatização. Ambos determinados pelo FMI em 2010”.
‘Sistema é inviável’
A crise grega abre a possibilidade de que se discuta a fundo
a questão do sistema da dívida, defende Fattorelli. No país helênico, os
"bancos privados criaram derivativos em cima de derivativos. Papéis podres
que estavam inundando seus balanços. Ou seja, eles estavam quebrados, mas foram
considerados grandes demais para quebrar e continuaram com seus patrimônios
intocáveis” Mas, quem está assumindo esse ônus são os países “e é um ônus que
não tem fim”, aponta.
Agência Efe
Indigentes dormem nas ruas de
Atenas
“O último dado conhecido do volume de derivativos tóxicos
divulgado pelo BIS (Banco Central dos Bancos Centrais), em 2011, informava que
o montante chegava a 11 PIBs mundiais. Então eu questiono: esse salvamento vai
resolver alguma coisa? Não! Será somente o adiamento até uma nova crise. E aí o
que vai ser feito depois?”, questiona.
Na verdade, esse sistema “além de não ter lógica está
comprometendo o emprego real, está comprometendo a indústria, o comércio. Ou
seja, toda a economia real está comprometida, assim como a vida das pessoas”.
Ela ressalta, no entanto, que isso não ocorre só na Grécia: “olha no Brasil, o
que está acontecendo [com o ajuste fiscal levado a cabo pelo ministro da
Fazenda, Joaquim Levy]. É o mesmo esquema, o mesmo sistema da dívida atuando”.
Argentina e Equador
Para um melhor entendimento da crise grega, Fattorelli a
comparou à que foi vivenciada pela Argentina em 2000: “depois de cumprir todas
as privatizações que o FMI queria, o fundo deu as costas ao país e deixou
espaço aberto para os bancos privados oferecerem o acordo. Eles colocaram juros
equivalentes ao crescimento do PIB e como consequência, hoje a dívida argentina
já é um problema novamente e não significou nenhum benefício aquilo [o
receituário do FMI]. Além disso, o país também não fez a auditoria”.
Em 2008, o presidente equatoriano, Rafael Correa, anunciou
que não pagaria parte da dívida externa do país, após a realização de uma
auditoria, da qual Fattorelli participou. A diferença do pequeno país
sul-americano para a Grécia, Argentina ou mesmo o Brasil é explicada pela
economista: “Correa conseguiu enfrentar o sistema porque, como o Syriza, chegou
ao poder sem financiamento privado, não chegou lá atrelado aos interesses dos
financiadores. Se olharmos no site do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] do
Brasil, quem financiou as campanhas presidenciais e legislativas foram os
bancos privados e as grandes corporações”, aponta.
Ela conta também que o processo completo no Equador durou um
ano e quatro meses. Além disso, o relatório foi submetido a um crivo jurídico
nacional e internacional para garantir sua legitimidade.
Outro ponto é que o Equador, que diminuiu em 70% o valor
devido aos credores, tinha, segundo Fattorelli, dinheiro para recomprar a
dívida: "Fez a proposta e honrou".
“O problema da Argentina [de 2000] é que não fez auditoria,
chegou ao fundo do poço e quebrou. Já a Grécia, quando o Syriza chegou ao
poder, já estava quebrada e dentro da camisa de força da estrutura da zona do
euro, em que não tem moeda própria. Nesse aspecto, a situação grega é até pior
do que a Argentina, que tinha moeda própria”, acrescenta.
Solução possível
Apesar das conclusões de Fattorelli, ela não considera que o
acordo feito por Tsipras era o único possível: “Eles poderiam criar uma moeda
paralela temporária — solução apontada por economistas famosos, inclusive — até
resolver a situação. Se adotassem isso, fariam um bem a toda a humanidade. Mas
prosseguir com este modelo suicida não tem futuro”.
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