terça-feira, 15 de outubro de 2013

Papa Francisco e a despaganização do papado


Imperador Constantino conduz São Silvestre I a Roma, símbolo do triunfo da Igreja que passava a ser oficial e esplendorosa

As inovações nos hábitos e nos discursos do Papa Francisco abriram aguda crise nas hostes dos conservadores que seguiam estritamente as directrizes dos dois papas anteriores. Intolerável para eles foi o facto de ter recebido em audiência privada um dos fundadores da “condenadaTeologia da Libertação, o peruano Gustavo Gutiérrez. Sentem-se aturdidos com a sinceridade do Papa ao reconhecer erros da Igreja e de si próprio, ao denunciar o carreirismo de muitos prelados, chamando até de “lepra” o espírito cortesão e adulador de muitos no poder, os assim chamados “vaticanocêntricos”. O que realmente os escandaliza é a inversão que fez ao colocar em primeiro lugar, o amor, a misericórdia, a ternura, o diálogo com a modernidade e a tolerância para com as pessoas mesmo divorciadas, homoafectivas e não-crentes, e só a seguir as doutrinas e disciplinas eclesiásticas.

Já se fazem ouvir vozes dos mais radicais que pedem, para o “bem da Igreja” (a deles obviamente) orações nesse teor: “Senhor, ilumine-o ou elimine-o”. A eliminação de papas incómodos não é raridade na longa história do papado. Houve uma época entre os anos 900 e 1000, chamada de “idade pornocrática” do papado na qual quase todos os papas foram envenenados ou assassinados.

As críticas mais frequentes que circulam nas redes sociais destes grupos, historicamente antiquados e atrasados, vão na linha de acusar o actual Papa de estar dessacralizando a figura do papado até banalizando-o e secularizando-o. Na verdade, são ignorantes da história, reféns de uma tradição secular que pouco tem a ver com o Jesus histórico e com o estilo de vida dos Apóstolos. Mas tem tudo a ver com a lenta paganização e mundanização da Igreja no estilo dos imperadores romanos pagãos e dos príncipes renascentistas, muitos deles cardeais.

As portas para este processo foram abertas já com o imperador Constantino (274-337) que reconheceu o cristianismo e com Teodósio (379-395) que o oficializou como a única religião permitida no Império. Com a decadência do sistema imperial criaram-se as condições para que os bispos, especialmente o de Roma, assumissem funções de ordem e de mando. Isso ocorreu de forma clara com o Papa Leão I, o Grande (440-461), feito prefeito de Roma, para enfrentar a invasão dos hunos. Foi o primeiro a usar o nome de Papa, antes reservado só aos Imperadores. Ganhou mais força com o Papa Gregório, o Grande (540-604), também proclamado prefeito de Roma, culminando mais tarde com Gregório VII (1021-1085) que se arrogou o absoluto poder no campo religioso e no secular: talvez a maior revolução no campo da eclesiologia.

Os atuais hábitos imperiais, principescos e cortesãos da Hierarquia, dos Cardeais e dos Papas remetem-se especialmente ao Papa Silvestre (334-335). No seu tempo criou-se uma falsificação, chamada de “Doação de Constantino”, com o objectivo de fortalecer o poder papal. Segundo ela, o Imperador Constantino teria doado ao Papa a cidade de Roma e a parte ocidental do Império. Incluída nessa “doação”, desmascarada como falsa pelo Cardeal Nicalou de Cusa (1400-1460) estava o uso das insígnias e da indumentária imperial (a púrpura), o título de Papa, o báculo dourado, a cobertura dos ombros toda revestida de arminho e orlada com seda, a formação da corte e a residência em palácios.

Aqui está a origem dos atuais hábitos principescos e cortesãos da Cúria romana, da Hierarquia eclesiástica, dos Cardeais e especialmente do Papa. A sua origem é o estilo pagão dos imperadores romanos e a sumptuosidade dos príncipes renascentistas. Houve, pois, um processo de paganização e de mundanização da igreja como instituição hierárquica.
Os que querem o retorno à tradição ritual que cerca a figura do Papa nem sequer têm consciência deste processo historicamente datado. Insistem na volta de algo que não passa pelo crivo dos valores evangélicos e da prática de Jesus.

O que está a fazer o Papa Francisco? Está a restituir ao papado e a toda a Hierarquia o seu estilo verdadeiro, ligado à Tradição de Jesus e dos Apóstolos. Na realidade está voltando à tradição mais antiga, operando uma despaganização do papado dentro do espírito evangélico, vivido tão emblematicamente por seu inspirador São Francisco de Assis.

A autêntica Tradição está ao lado do Papa Francisco. Os tradicionalistas são apenas tradicionalistas e não tradicionais. Estão mais próximos do palácio de Herodes e de César Augusto do que da gruta de Belém e da casa do artesão de Nazaré. Contra eles está a prática de Jesus e as suas palavras sobre o despojamento, a simplicidade, a humildade e o poder como serviço e não como fazem os príncipes pagãos e “os grandes que subjugam e dominam: convosco não deve ser assim; o maior seja como o menor e quem manda, como quem serve”(Lc 22, 26).

O Papa Francisco fala a partir desta originária e mais antiga Tradição, a de Jesus e dos Apóstolos. Por isso desestabiliza os conservadores que ficaram sem argumentos.



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