Os espectadores estavam inquietos nos seus lugares.
Mexiam-se, inconfortáveis, com uma frequência pouco usual que aquela Sala de
Teatro já não estava habituada a sentir; até porque já há tempo em demasia que as
peças de qualidade duvidosa por esta sala "assentavam arraiais".
O público frequentador desta Sala era quase sempre o mesmo em
todas as representações que ultimamente ali apareciam. Na falta de qualidade
cultural ou de credibilidade artística, as pessoas acomodavam-se às rotinas adquiridas
– eram frequentadores habituais da Sala de Teatro.
A Peça, a exemplo das últimas que ali foram representadas,
era protagonizada pelos mesmos canastrões: Pedro Coelho e Gaspar.
Desta vez, talvez porque no seio da própria companhia reina
a discórdia, o Ponto ("criador" das deixas para os autores) foi
súbita e anormalmente assumido pelo pivô dos saltimbancos: Selassié.
Este nome ficou na história, mas não é a mesma
individualidade. O mais conhecido – Hailé
Selassié – foi imperador da Etiópia; o "nosso" Ponto integra uma
companhia de saltimbancos…
Já quase tudo era
admitido naquela sala de teatro. Mesmo assim o público estava mais instável do
que era costume. Esta instabilidade manifestada pela plateia contagiava os
próprios canastrões protagonistas. O da voz bem timbrada quase que não se ouvia
e a voz tremia-lhe; o outro, o da conversa mais pausada, inexplicavelmente
atropelava as palavras e estas, deficientemente, saíam-lhe em catadupas.
Mas, eis senão
quando, o Ponto (o senhor Selassié) salta para Cena e com o mais seráfico dos
sorrisos, recita – ele próprio – ignorando a Didascália, o enredo e a própria
peça, começa a recitar (qual canastrão protagonista e convencido):
– Os cortes na despesa no Estado Social,
entenda-se, são melhores que aumentos de impostos, embora coexistam. Estes
cortes deixam "ao estimado público" a escolha entre morrer de fome,
morrer de peste ou enforcar-se. Morrer de morte natural ou de
velhice e com dignidade é que nunca mais acontecerá…
Entretanto, cá fora na rua, o temporal exercitava-se, com o
vento rugindo e a chuva ensopando quem não se tinha refugiado na Sala de
Teatro. E, talvez porque as pessoas no exterior da Sala de Teatro não tenham ouvido
o senhor do Ponto (Selassié), ninguém se matou.
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