A propósito de Paris, escreve o Prof José Luís Cabaço[1]:
"Neste momento, o assassinato das doze pessoas e, em
particular, dos jornalistas/artistas na sede do periódico satírico Charlie
Hebdo, está-se perfilando como um novo, mini 11 de Setembro. Chovem de todo o
lado mensagens de indignação, de condolências, de solidariedade, de
condenação... Também eu estou indignado. Estou indignado por cada pessoa que
morre no mundo da forma como morreram estes últimos. Sou solidário e feroz
defensor da liberdade de expressão.
Triste porque alguns dos caricaturistas de Charlie Hebdo
(particularmente Wolinski que conheci em Argel há “um século”) me apaixonavam e
acompanharam com a sua feroz e dessacralizante sátira toda a minha adolescência
e a minha vontade de então (e ainda de hoje) de mandar todo o mundo f.....-se.
Mas, por muito que me custe, não escreverei que sou Charlie
Hebdo. Não meterei nenhuma bandeira negra no meu perfil no Facebook, nem quaisquer
post com desenho de Charb nem sequer de Wolinski de quem tanto gosto... Se
tiverem tempo de ler o meu longo raciocínio, explicarei porquê.
Charlie Hebdo nasce em 1992 mas a equipa que o funda vem de
uma longa história de jornais de sátira libertária. Aquele que se pode
considerar como o antepassado de Charlie é “Hara-kiri” onde trabalhavam já
vários membros da actual redacção.
Hara-kiri satirizava os poderosos, De Gaulle, o exército, a
igreja e foi fechado por várias vezes para reabrir sob diferentes formas e
títulos.
Era divertido, dessacralizante, por vezes feroz. Mas tinha
aquele sabor de liberdade da época.
Hoje, Charlie Hebdo mudou. Ainda o compramos, de vez em
quando, porque tem um nome. Mas o seu público já não é o operário ou o
estudante sem dinheiro, mas a “esquerda-caviar” da Paris bem.
Nos últimos anos foi assumindo uma linha editorial
abertamente islamofóbica. Não se trata de visar, de vez em quando, uma
religião. Isso, fê-lo sempre mesmo com a igreja católica. O problema não é
esse. Se satirizasse os muçulmanos, o islão, o profeta, deus ou qualquer outra
personagem ou símbolo sagrado não veria nisso, pessoalmente, nada de errado.
Mas as numerosas campanhas de Carlie Hebdo contra os
muçulmanos, o islão, os símbolos sagrados desta religião tinham um sabor de
insistente.
Fazia parte de uma certa cultura muito difusa nos ambientes
que no passado tinham sido de esquerda e que hoje são só cínicos.
Ambientes que decidiram definitivamente estar do lado dos
fortes e que não têm mais nenhuma batalha verdadeira a levar a cabo.
Uma ex-esquerda que se rendeu, de mãos e pés atados, à
lógica do mercado, ao domínio dos bancos e, ultimamente, também à retórica do
conflito de civilizações. Uma ex-esquerda que considera que o integralismo islâmico
é o único e último perigo que ameaça a humanidade.
Uma ex-esquerda que já não tem sonhos nem projectos e que se
contenta em olhar o mundo do alto da sua presumida superioridade cultural.
Mas não é por isso que não porei luto pelos mortos de
Charlie Hebdo.
Não reconheço a quem quer que seja o direito de matar ninguém
em nome de nada e ainda menos em nome de uma divergência de opiniões.
As minhas razões são outras.
O ataque à redacção do jornal satírico ocorre num momento
particular. Ainda há um ano não se falava de integralismo.
O tema tinha quase desaparecido das primeiras páginas.
E se se viam imagens de barbudos em armas nas estradas de Trípoli
o de Aleppo, eles eram chamados “Revolucionários”.
E cantavam-se loas a estes bravos rapazes. Lia-se em toda a
parte que os bravos rapazes recebiam ajuda de todas as partes.
Lia-se um pouco menos que os bravos rapazes tinham tomado o controlo
de várias unidades de extracção de petróleo e que a Turquia, um estado membro
da Nato, lhes comprava tranquilamente. Lia-se ainda menos que, para além das
ajudas e dos milhares de jovens vindos de todo o mundo em apoio a estes bravos
rapazes, estavam também conselheiros militares que ensinavam os bravos rapazes
a combater...
Depois, de repente, tudo muda.
Voltam a chamar-lhe terrorismo, e a morte de membros das
minorias até então silenciadas vêm à luz.
Os serviços secretos de todos os países da Nato (e seus
numerosos aliados) fazem de contas que caem das nuvens descobrindo que milhares
de jovens partiram de suas cidades para reforçar os “revolucionários”.
Aparentemente não sabiam de nada. E nós a escandalizarmo-nos
juntamente com eles.
Já há décadas que este joguinho era jogado.
As redes que hoje se chamam Al-Qaeda e depois Isis, Boko
Haram e companhia foram organizados em plena guerra fria numa perspectiva
anti-soviética.
Os países do Golfo Pérsico, em colaboração com a Nato,
fizeram um trabalho de montagem financeira, propagandística e organizativa para
favorecer o afluxo de combatentes de toda a parte.
Al-Qaeda era o principal aliado da Nato e obviamente dos
países do Golfo nos anos noventa. Depois, pouco a pouco, resvala para a área da
ilegalidade.
A guerra fria estava terminando e Samuel P. Huntington pré-anunciava
um novo conflito baptizando-o de “conflito de civilizações”.
Entretanto chega a guerra da Argélia. Centenas de jovens
regressados do Afeganistão contribuem para formar os primeiros núcleos de
Grupos que, com o exército argelino (que também ele não estava para brincadeiras)
fazem passar o país por duas décadas infernais.
Simultaneamente, nas mesquitas de londrinas, mas também nas
francesas, italianas, alemãs, indivíduos pouco recomendáveis predicavam a luta
armada na Argélia e recolhiam dinheiro proporcionando negócios fabulosos à
indústria de armamento.
A Argélia estava saindo de uma era socialista e necessitava
de um pequeno empurrão para privatizar os seus enormes recursos energéticos.
E como por milagre, após cada concessão assinada com uma
multinacional, encerrava-se uma rede de apoio ao integralismo armado.
Quando finalmente as multinacionais tomaram o controlo do
petróleo argelino, as redes tornaram-se terroristas e foram totalmente
desmanteladas.
Pelo menos assim disse a imprensa livre de todo o mundo
livre.
Em 2001 aconteceu o 11 de Setembro e, com ele, uma
verdadeira histeria. Quem não tinha terroristas islâmicos para prender,
inventava-os.
Todos queriam ter a sua ameaça e os seus mini-ataques.
Nunca foi totalmente esclarecido por quem, por quê e como
foram perpetrados daquele dia, mas não faltavam justificações para as novas
políticas de controle militar da área do médio oriente desejadas pelos
Neo-cons, os neo-conservadores americanos.
Já lá vão 14 anos que decorre a sua war on terror que apenas
produziu cada vez mais terror e cada vez mais novas wars.
Os Neo-cons vão-se e chega Obama, que diz querer retirar as
tropas e vai ao Cairo onde faz um longo e forte discurso no qual diz que
estende a sua mão para ajudar na criação de um “Novo Médio-oriente”. Pouco
depois daquele discurso as praças árabes começam a agitar-se.
O mundo descobre que no mundo árabe não existem só militares
bigodudos e rebeldes barbudos. No meio, há povos com muitas nuances que, ao fim
e ao cabo, aspiram às mesmas coisas que todos os outros povos: dignidade,
liberdade, bem-estar...
Os islamitas estão ausentes das praças ou quase. De qualquer
forma, não lhes pertence a iniciativa. Às vezes seguem o movimento.
Por vezes retiram-se. O tom é dado pelos jovens laicos,
cultos e amantes da liberdade e dos direitos humanos.
Isso não agrada a todos, ao que parece.
Já em Maio de 2011, os serviços secretos russos (geralmente
bem informados por aquilo que sei) alertavam sobre a iminente reconstrução de
redes integralistas internacionais sob o comando do especialista saudita no assunto:
o príncipe Bandar Assudairi Ben Saud, promotor de vários grupos e de várias
guerrilhas islâmicas no mundo.
O objectivo era o de recolocar o islamismo político na
liderança das revoltas.
Essa informação foi retomada apenas pela rede Voltaire,
oficialmente classificada como subversiva, e todos fizeram de conta que nada
existia.
Hoje, tudo o que foi previsto naquele alerta se verificou, e
muito mais.
Na Líbia, um comandante “ex” Al-Qaeda liderando um exército
armado pelo Qatar e Arábia Saudita e treinado pela CIA toma a cidade de Trípoli
que as milícias tribais não conseguiam conquistar e o país torna-se uma espécie
de território libertado por grupos armados de todos os tipos.
No Iémen, a Arábia Saudita reinstala o velho regime, mas
estranhamente grupos armados despontam em toda a parte como cogumelos.
No Egipto e na Tunísia os irmãos muçulmanos são levados ao
poder num tapete de petrodólares. Da Síria nem falemos... O resto da história é
bem conhecida.
Entretanto no ocidente as mesquitas (não todas felizmente,
mas as mais extremistas e que seriam em teoria também as mais vigiadas pelos
serviços secretos) voltam a ser locais de recolha de fundos e de recrutamento.
Se amanhã um juiz investiga com demasiado rigor o porquê,
pode ocorrer um novo caso Abu Omar.
E agora, finalmente, de há menos de um ano para cá, todos a
gritar o perigo. Que jogo é este? Alguém pode explicar?
Já há mais de 30 anos que os serviços secretos de todo o
mundo brincam com o fogo com os grupos integralistas. São controlados, são
infiltrados, são insuflados quando servem e esvaziados quando deixam de servir.
De resto, é o mesmo que se tem feito e continua a fazer com
os grupos extremistas de direita e de esquerda desde a segunda guerra mundial.
Quem se recorda da sigla “Stay Behind” e dos falsos
atentados (mas com mortos verdadeiros) por toda a Europa sabe do que estou
falando.
Hoje é preciso fazer subir a aposta em jogo.
A crise pede guerra. As novas guerras pelo controlo do Médio
Oriente precisam de legitimidade.
A crise desacreditou toda a classe política europeia e só o
crescimento dos extremismos de direita pode levar as gentes e voltar a
votá-los.
Não gostas do Renzi mas como o perigo é Salvini (porque será
que ele está sempre na TV?) então vais e votas Renzi.
Por outro lado, também as redes do integralismo armado
precisam de fazer aumentar o nível da tensão.
Quem vive de violência e para a violência precisa da tensão
como de oxigénio. Eles vivem na mesma lógica.
E agora, cometido o delito, todos os fascistóides que
gostariam de ter feito explodir a cabeça ao grupo Charlie Hebdo pelas suas
velhas posições antifascistas ou pelas suas posições sobre a homossexualidade e
outros temas do género, todos eles já publicaram mensagens de condolências e
choram lágrimas de crocodilo sobre esta Europa que queriam livre, mas que é
ameaçada pelos muçulmanos, pelos africanos, pelos asiáticos, portadores de
valores antidemocráticos !!!!!!
E nos set televisivos já começaram a recolher os frutos
deste verdadeiro maná político que lhes foi servido num prato de … chumbo.
É para não fazer parte deste gigantesco teatrinho das
emoções encomendadas, das indignações selectivas, da solidariedade de fachada,
das amnésias colectivas e da hipocrisia generalizada que me recuso a içar a
bandeira negra, nem escreverei “Eu sou Charlie”.
Eu não sou Charlie. Fui Charlie quando era criança, quando
também Charlie era Charlie. Hoje já não o somos, nem ele nem eu.
Hoje Charlie já não faz rir ninguém e a mim vem vontade de
chorar, chorar só, isolado.
Tenho vontade de chorar, mas não só por Wolinski e pelos
seus colegas.
Vem-me vontade de chorar por todos os mortos desta história
sórdida.
Chorar pelas centenas de milhar de mortos durante a guerra
suja na Argélia, pelos amigos que ali perdi.
Chorar elas vítimas do World Trade Center, pelo meio milhão
de iraquianos, as centenas de milhar de afegãos, paquistaneses, pelas dezenas
de milhar de líbios, de iemenitas, de palestinos, pelas centenas de milhar de
pessoas mortas na Síria, tudo parte de uma trágica farsa chamada “conflito de
civilizações”.
[1]
Ex-Ministro de Transportes de Moçambique. Texto publicado no seu facebook sobre
a questão de Paris...
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