Faz hoje
dois meses que morreu o meu sogro (27 de Novembro de 2013).
Ao longo da
sua vida procurou sempre a rectidão, combatendo as injustiças, a hipocrisia do
clero da sua própria Igreja e as desigualdades das pessoas.
Como
católico que era, ansiava pelo regresso do evangelho à sua Igreja, despojando-a
dos poderes imperiais, da riqueza, do luxo e da ostentação em que se tinha
tornado.
Penso que
estas minhas palavras mais não são do que um esboço daquilo que quereria e
deveria dizer.
Penso
interpretar a vontade dele na divulgação do seu pensamento (embora desempenhado
por mim), principalmente porque testemunhei a alegria que sentiu no prenúncio
da transformação da Igreja Católica demonstrada pelo Papa Francisco.
Teve a
oportunidade de ver o início das mudanças que, cada vez mais, se adivinham na
Igreja.
A isto me
sinto obrigado.
Como ele
dizia, estas palavras do Papa Francisco (que transcrevo) esclarecem o modo de
viver e de ver a missão da Igreja: “Eu vejo a Igreja como um hospital de
campanha após uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem
colesterol e glicose altos! É preciso curar as feridas. Depois poder-se-á falar
de tudo o resto”. “A Igreja por vezes fechou-se em pequenas
coisas, pequenos preceitos. A coisa mais importante, ao invés, é o
primeiro anúncio: ‘Jesus o salvou!’. Portanto, os ministros da Igreja, em
primeiro lugar, devem ser ministros de misericórdia e as reformas organizativas
e estruturais são secundárias, ou seja, vêm depois porque a primeira reforma
deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser pessoas capazes de
aquecer o coração das pessoas, de caminhar com elas na noite, de saber dialogar
e também entrar na noite delas, na escuridão delas sem se perder. O povo de
Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado”.
Para o meu
sogro, até ao “aparecimento” deste Papa, o ponto de partida estava na falta de
sentido das pessoas que não encontravam resposta para os problemas da vida,
pois não tinham descoberto, ainda, a presença de Deus neste mundo convulsivo. A
maior parte dessas pessoas, ao sentirem um mundo como o actual (com os
cataclismos, a violência, o egoísmo ou a solidão) não conseguem entender Deus
como o princípio da humanização que lhes permitisse superar o medo que sentem de
si próprios, perdidos na solidão das pessoas que os rodeiam. Logicamente, a sua
preocupação seria em encontrar uma resposta que mostrasse Deus como sentido de
vida, princípio do amor, companhia pessoal e comunhão carregada de esperança
neste mundo tão carente destes “bem-estares”.
Para o meu
sogro, o “problema” criado pela insegurança das pessoas em Deus devia-se,
principalmente ao desconhecimento do evangelho, por parte delas (mesmo sendo cristãs)
– para ele era um fenómeno conceptual de kerigma[1].
Assim:
a) Muitos se
fundamentam numa visão não cristã de Deus, em vez de se apoiarem na mensagem do
próprio evangelho;
b) Deste
modo, tentam compreender-se a si próprios e a Deus como realidade absoluta,
fechada em si mesma, perfeita, e não como uma relação de amor – essência do evangelho.
Ele queria
ir mais além, pondo no centro do seu discurso o valor da relação humana como
relação activa para com Deus. Isso significava que entendia Deus e o ser humano
numa relação interpessoal, gratuita da parte de Deus e manifestada numa vida
compartilhada com o “criador”, da parte dos homens e das mulheres. Logicamente,
a sua experiência teológica chave inscrevia-se na confiança ilimitada em Deus;
uma confiança que era mais forte que o próprio medo do mundo “onde existia” – quer
isto dizer, que a capacidade de se dar aos outros era mais forte, mais
importante e dava-lhe a confiança necessária para produzir obra e realizar-se.
Para ele não
existia o “eu” antes do “tu”; ambos se davam ao mesmo tempo, formando uma única
realidade – era dependente e, simultaneamente, partilhada.
Ele não era
nem sujeito nem objecto, num sentido absoluto; era uma presença relacional.
Isso significa que o seu "eu" não surgia como algo separado, que podia
ser separada da relação com o mistério e as outras realidades (os outros eus,
história…), uma vez que essas relações eram suas e considerava-as sempre como uma
presença relativa. A sua vida inteira era definida como um presente ou uma
gratificação divina que, permanentemente, a partilhava com os outros.
Só essa linguagem
explica o carácter específico da "vida humana”, pois, para ele, não estava
sujeita a laboratório, mas que se descobria e expressava no compromisso
pessoal. Só sabia o que era (quem era) na medida em que traçou um curso de vida
a partir do perfil da sua existência partilhada no amor.
Penso que
traduzirei bem o seu pensamento ao afirmar:
O que Jesus
queria era ensinar a viver e não criar uma nova religião
com fregueses piedosos. A Tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho
espiritual que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora
do quadro eclesial ou religioso.
Ocorre que
essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, a religião
cristã: uma organização religiosa, sob a forma de diversas
Igrejas especialmente a Igreja romano-católica. Elas caracterizam-se por serem
instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, ritos e cânones
jurídicos. A Igreja católico-romana, concretamente, organizou-se em redor da
categoria poder sagrado (sacra potestas) todo
concentrado nas mãos de uma pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na
cabeça, com exclusão dos leigos e das mulheres que detém as decisões e o
monopólio da palavra. É hierárquica e criadora de grandes desigualdades. Ela
caiu na tentação de se identificar com a Tradição de Jesus que é maior que a
Igreja.
Esse tipo de
tradição histórica cobriu de cinzas grande parte da originalidade e do fascínio
da Tradição de Jesus. Por isso as Igrejas todas estão em crise, pois a maioria
se colocou como fim em si mesmo e não como caminho para Deus.
O próprio
Jesus, prevendo este desenvolvimento, advertiu que pouco adiantava observar as
leis e “não se preocupar com o mais importante que é a justiça, a
misericórdia e a fé; é isso que importa, sem omitir o outro” (Mt 23, 23).
– Onde reside, pois, o fascínio da figura e dos discursos do Papa
Francisco que lhe abriu uma esperança nova de Reforma?
– Reside no facto de se ligar mais à
Tradição de Jesus do que à religião cristã. Afirma que “o amor vem antes
do dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas” (Civiltà
Cattolica).
Sem essa
inversão o Cristianismo perde “a frescura e a fragância do evangelho” e
transforma-se numa ideologia e numa obsessão doutrinária.
Para ele
Cristianismo era amor.
[1]
Kerigma (do grego: κήρυγμα, kérygma)
é uma palavra usada no Novo
Testamento com o significado de mensagem, pregação, anúncio ou proclamação.
1 comentário:
Comovente.
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