segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

AO MEU SOGRO



Faz hoje dois meses que morreu o meu sogro (27 de Novembro de 2013).


Ao longo da sua vida procurou sempre a rectidão, combatendo as injustiças, a hipocrisia do clero da sua própria Igreja e as desigualdades das pessoas.

Como católico que era, ansiava pelo regresso do evangelho à sua Igreja, despojando-a dos poderes imperiais, da riqueza, do luxo e da ostentação em que se tinha tornado.

Penso que estas minhas palavras mais não são do que um esboço daquilo que quereria e deveria dizer.

Penso interpretar a vontade dele na divulgação do seu pensamento (embora desempenhado por mim), principalmente porque testemunhei a alegria que sentiu no prenúncio da transformação da Igreja Católica demonstrada pelo Papa Francisco.

Teve a oportunidade de ver o início das mudanças que, cada vez mais, se adivinham na Igreja.
A isto me sinto obrigado.

Como ele dizia, estas palavras do Papa Francisco (que transcrevo) esclarecem o modo de viver e de ver a missão da Igreja: “Eu vejo a Igreja como um hospital de campanha após uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem colesterol e glicose altos! É preciso curar as feridas. Depois poder-se-á falar de tudo o resto”. “A Igreja por vezes fechou-se em pequenas coisas, pequenos preceitos. A coisa mais importante, ao invés, é o primeiro anúncio: ‘Jesus o salvou!’. Portanto, os ministros da Igreja, em primeiro lugar, devem ser ministros de misericórdia e as reformas organizativas e estruturais são secundárias, ou seja, vêm depois porque a primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser pessoas capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar com elas na noite, de saber dialogar e também entrar na noite delas, na escuridão delas sem se perder. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado”.


Para o meu sogro, até ao “aparecimento” deste Papa, o ponto de partida estava na falta de sentido das pessoas que não encontravam resposta para os problemas da vida, pois não tinham descoberto, ainda, a presença de Deus neste mundo convulsivo. A maior parte dessas pessoas, ao sentirem um mundo como o actual (com os cataclismos, a violência, o egoísmo ou a solidão) não conseguem entender Deus como o princípio da humanização que lhes permitisse superar o medo que sentem de si próprios, perdidos na solidão das pessoas que os rodeiam. Logicamente, a sua preocupação seria em encontrar uma resposta que mostrasse Deus como sentido de vida, princípio do amor, companhia pessoal e comunhão carregada de esperança neste mundo tão carente destes “bem-estares”.

Para o meu sogro, o “problema” criado pela insegurança das pessoas em Deus devia-se, principalmente ao desconhecimento do evangelho, por parte delas (mesmo sendo cristãs) – para ele era um fenómeno conceptual de kerigma[1]. Assim:

a) Muitos se fundamentam numa visão não cristã de Deus, em vez de se apoiarem na mensagem do próprio evangelho;

b) Deste modo, tentam compreender-se a si próprios e a Deus como realidade absoluta, fechada em si mesma, perfeita, e não como uma relação de amor – essência do evangelho.

Ele queria ir mais além, pondo no centro do seu discurso o valor da relação humana como relação activa para com Deus. Isso significava que entendia Deus e o ser humano numa relação interpessoal, gratuita da parte de Deus e manifestada numa vida compartilhada com o “criador”, da parte dos homens e das mulheres. Logicamente, a sua experiência teológica chave inscrevia-se na confiança ilimitada em Deus; uma confiança que era mais forte que o próprio medo do mundo “onde existia” – quer isto dizer, que a capacidade de se dar aos outros era mais forte, mais importante e dava-lhe a confiança necessária para produzir obra e realizar-se.

Para ele não existia o “eu” antes do “tu”; ambos se davam ao mesmo tempo, formando uma única realidade – era dependente e, simultaneamente, partilhada.

Ele não era nem sujeito nem objecto, num sentido absoluto; era uma presença relacional. Isso significa que o seu "eu" não surgia como algo separado, que podia ser separada da relação com o mistério e as outras realidades (os outros eus, história…), uma vez que essas relações eram suas e considerava-as sempre como uma presença relativa. A sua vida inteira era definida como um presente ou uma gratificação divina que, permanentemente, a partilhava com os outros.

Só essa linguagem explica o carácter específico da "vida humana”, pois, para ele, não estava sujeita a laboratório, mas que se descobria e expressava no compromisso pessoal. Só sabia o que era (quem era) na medida em que traçou um curso de vida a partir do perfil da sua existência partilhada no amor.

Penso que traduzirei bem o seu pensamento ao afirmar:
O que Jesus queria era ensinar a viver e não criar uma nova religião com fregueses piedosos. A Tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho espiritual que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial ou religioso.

Ocorre que essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, a religião cristã: uma organização religiosa, sob a forma de diversas Igrejas especialmente a Igreja romano-católica. Elas caracterizam-se por serem instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, ritos e cânones jurídicos. A Igreja católico-romana, concretamente, organizou-se em redor da categoria poder sagrado (sacra potestas) todo concentrado nas mãos de uma pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na cabeça, com exclusão dos leigos e das mulheres que detém as decisões e o monopólio da palavra. É hierárquica e criadora de grandes desigualdades. Ela caiu na tentação de se identificar com a Tradição de Jesus que é maior que a Igreja.

Esse tipo de tradição histórica cobriu de cinzas grande parte da originalidade e do fascínio da Tradição de Jesus. Por isso as Igrejas todas estão em crise, pois a maioria se colocou como fim em si mesmo e não como caminho para Deus.

O próprio Jesus, prevendo este desenvolvimento, advertiu que pouco adiantava observar as leis e “não se preocupar com o mais importante que é a justiça, a misericórdia e a fé; é isso que importa, sem omitir o outro” (Mt 23, 23).

– Onde reside, pois, o fascínio da figura e dos discursos do Papa Francisco que lhe abriu uma esperança nova de Reforma?

Reside no facto de se ligar mais à Tradição de Jesus do que à religião cristã. Afirma que “o amor vem antes do dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas” (Civiltà Cattolica).

Sem essa inversão o Cristianismo perde “a frescura e a fragância do evangelho” e transforma-se numa ideologia e numa obsessão doutrinária.

Para ele Cristianismo era amor.




[1] Kerigma (do grego: κήρυγμα, kérygma) é uma palavra usada no Novo Testamento com o significado de mensagem, pregação, anúncio ou proclamação.