segunda-feira, 13 de abril de 2015

VAMOS FAZER ESTÁGIOS ATÉ SERMOS VELHINHOS?




Seis em cada dez trabalhos criados em Portugal são estágios. Neste mês, arrancam as candidaturas ao Reactivar, programa de estágios para maiores de 30. Precários Inflexíveis juntaram-se no sábado para organizar uma “resposta a este abuso

Mariana Correia Pinto, no Público de 13 de Janeiro de 2015

O estágio profissional de 12 meses está prestes a terminar e Joana já sabe que não vai continuar na empresa. Os zunzuns de uma possível proposta apontam para um salário igual ou inferior ao que recebe actualmente (cerca de 690 euros brutos por mês) e não está disposta a aceitar mais essa exploração. No currículo já tem um estágio curricular não remunerado de nove meses, obrigatório para terminar o mestrado em Psicologia, e quatro meses e meio de trabalho gratuito na empresa onde está agora a terminar o estágio profissional – período em que esteve à espera da aprovação do estágio por parte do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Para ser aceite na Ordem dos Psicólogos, terá ainda de fazer mais um estágio profissional de um ano.

A vida de estágio em estágio de Joana (nome fictício) é semelhante à de milhares de portugueses que vêem nesta modalidade a única opção de entrada no mercado de trabalho. Segundo dados do Banco de Portugal divulgados no final de 2014, seis em cada dez postos de trabalho criados no país correspondem a estágios. No sábado, os Precários Inflexíveis juntaram-se para delinear um “caderno reivindicativo” e organizar uma campanha de luta contra esta realidade.

Maria Manuel também lá esteve. Acha urgente que se fale sobre o assunto e que se mudem mentalidades: “As empresas tentam normalizar o assunto e apresentar o estágio como uma grande oportunidade e um privilégio que dão às pessoas. Mas estamos a falar de uma forma de exploração e precarização utilizada para suprimir postos de trabalho.”

A designer de comunicação sentiu-o na pele. Em 2010, embarcou num workshop de Verão de três meses promovido pelo grupo Menina Design. Eram 30 pessoas e seis seriam seleccionadas para um estágio profissional no fim. Maria passou à fase dois. Mas a aprovação do estágio pelo IEFP tardava e decidiu que não queria trabalhar de graça. Comunicou-o à empresa e foi aguardar o início do estágio para casa. Meses depois, quando as verbas do Estado foram desbloqueadas, a empresa informou-a de que já não estava interessada nela: “Disseram-me que a minha paixão pela empresa não era suficiente, já que todos tinham continuado a trabalhar menos eu.”

A empresa de design por onde Maria Manuel passou esteve recentemente na ribalta por ter sido a presença portuguesa no filme Cinquenta Sombras de Grey. Mas é também uma figura assídua em plataformas de denúncia de precariedade laboral como os Precários Inflexíveis ou o Ganhem Vergonha, que lançou uma campanha de crowdfunding para editar um livro com denúncias como essa. “Fazendo-se valer da visibilidade internacional”, o Menina Design Group tem “muita gente a trabalhar de graça”, acusa Maria Manuel. “As pessoas ficam iludidas à espera de que alguma magia aconteça.” O workshop gratuito em que a designer de 30 anos participou em 2010 não foi um evento único.

Oportunidade de aprendizagem? “Não”, responde categoricamente. Durante o workshop, contou ao P3, os jovens designers já produzem peças comercializadas e mesmo quem não é seleccionado para o estágio profissional é convidado a “continuar a aparecer” na empresa.

“Têm ali um conjunto de malta a trabalhar de graça, tanto em produção de mobiliário para as marcas próprias como na produção de serviços vendidos a outras marcas.” O P3 contactou a Menina Design, mas até à hora de publicação deste artigo não obteve qualquer resposta.

É do design, arquitectura, psicologia e algumas áreas humanísticas que continua a chegar o maior número de queixas. Mas o “abuso inaceitável” da figura do estagiário é “cada vez maior e abrange cada vez mais áreas”, alerta Adriano Campos, dos Precários Inflexíveis. “Temos encontrado ofertas de estágio para operadores de telemarketing ou vendedores em lojas de roupa. É um absurdo.”

Os estagiários, recordam os Precários Inflexíveis, têm exigências de um posto de trabalho normal, cumprem um horário, não têm férias, se fizerem estágios de nove meses não têm direito a subsídio de desemprego no fim. E sofrem ainda uma “desconsideração”, sendo sempre colocados num segundo escalão, assumindo frequentemente tarefas que não são a sua função. “O estágio é claramente uma forma de nivelar por baixo a entrada no mercado de trabalho”, lamenta Adriano Campos.

“Mural da vergonha”

Também no sábado foi inaugurado no Porto (Galeria Geraldes da Silva) um “mural da vergonha”, onde todos podem colocar propostas absurdas de emprego e estágios (“como a da Danone, que dava paletes de iogurte em troca de emprego, ou as de empresas que pedem experiência profissional, domínio de três línguas e 12 horas de trabalho diário e oferecem um salário mínimo”, exemplifica Adriano) e pode assistir-se à peça de teatro-fórum M.E.T.2., uma produção conjunta do Núcleo de Teatro do Oprimido de Braga e da Associação Tartaruga Falante, que aborda as questões da precariedade, estágios e direitos laborais e apresenta uma crítica ao discurso do empreendedorismo. As iniciativas fazem parte do evento SOS Estagiário, organizado pelos Precários Inflexíveis, para se ouvir relatos de estagiários (qualquer pessoa pode aparecer), desenhar-se um “caderno reivindicativo” e pensar numa “forte campanha” que estará depois nas ruas e que será levada à Assembleia da República em formato de petição.

Algumas das exigências a incluir estavam já bem delineadas na cabeça dos activistas: maior fiscalização dos estágios por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho, limitação do acesso a estágios por parte das empresas (com a obrigatoriedade de contratação de um em cada dois estagiários), alargamento dos estágios de nove para 12 meses (dando às pessoas a garantia de que têm, pelo menos, acesso ao subsídio de desemprego no fim do contrato), garantia de respostas mais céleres do IEFP aos processos e novas soluções para quem é obrigado a fazer estágios para entrar nas respectivas ordens (como a dos Arquitectos, Advogados ou Psicólogos, por exemplo).

Recentemente, uma proposta de “summercamp em plena Primavera” publicada no Facebook pela empresa de arquitectura Polígono gerou uma onda de indignação nas redes sociais, onde se fala de “escravatura contemporânea”. André Pereira revelou num blogue uma troca de emails com a empresa, que lhe propunha uma remuneração de 500 euros por dois meses por um “trabalho rijo e intenso fisicamente”, mas que “seguramente terá imensa visibilidade e repercussão”.

“É preciso contrariar esta ideia de que as empresas fazem um favor aos trabalhadores por lhes darem um estágio. A sociedade precisa destas pessoas e ser integrado é um direito”, sublinha Adriano Campos. As perspectivas de uma reviravolta desta “lógica instalada” não são, no entanto, animadoras. O Governo publicou no dia 20 de Março no Diário da República o Reactivar, programa de estágios de seis meses destinados a maiores de 30 anos inscritos em centros de emprego há mais de um ano. “É uma extensão da austeridade. Este Governo especializou-se em ocupar os desempregados com estágios e cursos, e desde que assumiu funções fez com que se perdessem milhares de postos de trabalho.”

A empresa onde Maria Manuel está há dois anos com um contrato a tempo indeterminado mudou o foco e vai deixar de precisar de uma designer. Em breve estará desempregada. Tal como Joana. O futuro? Provavelmente passa por emigrar, lamenta Maria Manuel: “Emocionalmente custa-me, mas em Portugal ou se é empreendedor ou se salta de estágio em estágio. Vamos fazer estágios até sermos velhinhos? Não é solução.”





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