“Seis em cada dez
trabalhos criados em Portugal são estágios. Neste mês, arrancam as candidaturas
ao Reactivar, programa de estágios para maiores de 30. Precários Inflexíveis
juntaram-se no sábado para organizar uma “resposta a este abuso”
Mariana Correia Pinto, no Público de 13 de Janeiro de 2015
O estágio
profissional de 12 meses está prestes a terminar e Joana já sabe que não vai
continuar na empresa. Os zunzuns de uma possível proposta apontam para um salário
igual ou inferior ao que recebe actualmente (cerca de 690 euros brutos por mês)
e não está disposta a aceitar mais essa exploração. No currículo já tem um
estágio curricular não remunerado de nove meses, obrigatório para terminar o
mestrado em Psicologia, e quatro meses e meio de trabalho gratuito na empresa
onde está agora a terminar o estágio profissional – período em que esteve à
espera da aprovação do estágio por parte do Instituto de Emprego e Formação
Profissional (IEFP). Para ser aceite na Ordem dos Psicólogos, terá ainda de
fazer mais um estágio profissional de um ano.
A vida de estágio em estágio de Joana (nome fictício) é
semelhante à de milhares de portugueses que vêem nesta modalidade a única opção
de entrada no mercado de trabalho. Segundo dados do Banco de Portugal
divulgados no final de 2014, seis em cada dez postos de trabalho criados no
país correspondem a estágios. No sábado, os Precários Inflexíveis juntaram-se
para delinear um “caderno reivindicativo” e organizar uma campanha de luta
contra esta realidade.
Maria Manuel também lá esteve. Acha urgente que se fale
sobre o assunto e que se mudem mentalidades: “As empresas tentam normalizar o
assunto e apresentar o estágio como uma grande oportunidade e um privilégio que
dão às pessoas. Mas estamos a falar de uma forma de exploração e precarização
utilizada para suprimir postos de trabalho.”
A designer de comunicação sentiu-o na pele. Em 2010,
embarcou num workshop de Verão de três meses promovido pelo grupo Menina
Design. Eram 30 pessoas e seis seriam seleccionadas para um estágio profissional
no fim. Maria passou à fase dois. Mas a aprovação do estágio pelo IEFP tardava
e decidiu que não queria trabalhar de graça. Comunicou-o à empresa e foi
aguardar o início do estágio para casa. Meses depois, quando as verbas do
Estado foram desbloqueadas, a empresa informou-a de que já não estava
interessada nela: “Disseram-me que a minha paixão pela empresa não era suficiente,
já que todos tinham continuado a trabalhar menos eu.”
A empresa de design por onde Maria Manuel passou esteve
recentemente na ribalta por ter sido a presença portuguesa no filme Cinquenta
Sombras de Grey. Mas é também uma figura assídua em plataformas de denúncia
de precariedade laboral como os Precários Inflexíveis ou o Ganhem Vergonha, que
lançou uma campanha de crowdfunding para editar um livro com denúncias
como essa. “Fazendo-se valer da visibilidade internacional”, o Menina Design Group
tem “muita gente a trabalhar de graça”, acusa Maria Manuel. “As pessoas ficam
iludidas à espera de que alguma magia aconteça.” O workshop gratuito em
que a designer de 30 anos participou em 2010 não foi um evento único.
Oportunidade de aprendizagem? “Não”, responde
categoricamente. Durante o workshop, contou ao P3, os jovens designers
já produzem peças comercializadas e mesmo quem não é seleccionado para o
estágio profissional é convidado a “continuar a aparecer” na empresa.
“Têm ali um conjunto de malta a trabalhar de graça, tanto em
produção de mobiliário para as marcas próprias como na produção de serviços vendidos
a outras marcas.” O P3 contactou a Menina Design, mas até à hora de publicação
deste artigo não obteve qualquer resposta.
É do design, arquitectura, psicologia e algumas áreas
humanísticas que continua a chegar o maior número de queixas. Mas o “abuso inaceitável”
da figura do estagiário é “cada vez maior e abrange cada vez mais áreas”,
alerta Adriano Campos, dos Precários Inflexíveis. “Temos encontrado ofertas de
estágio para operadores de telemarketing ou vendedores em lojas de
roupa. É um absurdo.”
Os estagiários, recordam os Precários Inflexíveis, têm exigências
de um posto de trabalho normal, cumprem um horário, não têm férias, se fizerem estágios
de nove meses não têm direito a subsídio de desemprego no fim. E sofrem ainda
uma “desconsideração”, sendo sempre colocados num segundo escalão, assumindo frequentemente
tarefas que não são a sua função. “O estágio é claramente uma forma de nivelar
por baixo a entrada no mercado de trabalho”, lamenta Adriano Campos.
“Mural da vergonha”
Também no sábado foi inaugurado no Porto (Galeria Geraldes
da Silva) um “mural da vergonha”, onde todos podem colocar propostas absurdas de emprego e estágios
(“como a da Danone, que dava paletes de iogurte em troca de emprego, ou as de
empresas que pedem experiência profissional, domínio de três línguas e 12 horas
de trabalho diário e oferecem um salário mínimo”, exemplifica Adriano) e pode
assistir-se à peça de teatro-fórum M.E.T.2., uma produção conjunta do
Núcleo de Teatro do Oprimido de Braga e da Associação Tartaruga Falante, que
aborda as questões da precariedade, estágios e direitos laborais e apresenta
uma crítica ao discurso do empreendedorismo. As iniciativas fazem parte do
evento SOS Estagiário, organizado pelos Precários Inflexíveis, para se ouvir
relatos de estagiários (qualquer pessoa pode aparecer), desenhar-se um “caderno
reivindicativo” e pensar numa “forte campanha” que estará depois nas ruas e que
será levada à Assembleia da República em formato de petição.
Algumas das exigências a incluir estavam já bem delineadas
na cabeça dos activistas: maior fiscalização dos estágios por parte da
Autoridade para as Condições do Trabalho, limitação do acesso a estágios por parte
das empresas (com a obrigatoriedade de contratação de um em cada dois
estagiários), alargamento dos estágios de nove para 12 meses (dando às pessoas
a garantia de que têm, pelo menos, acesso ao subsídio de desemprego no fim do contrato),
garantia de respostas mais céleres do IEFP aos processos e novas soluções para
quem é obrigado a fazer estágios para entrar nas respectivas ordens (como a dos
Arquitectos, Advogados ou Psicólogos, por exemplo).
Recentemente, uma proposta de “summercamp em plena
Primavera” publicada no Facebook pela empresa de arquitectura Polígono gerou uma
onda de indignação nas redes sociais, onde se fala de “escravatura contemporânea”.
André Pereira revelou num blogue uma troca de emails com a empresa, que
lhe propunha uma remuneração de 500 euros por dois meses por um “trabalho rijo
e intenso fisicamente”, mas que “seguramente terá imensa visibilidade e
repercussão”.
“É preciso contrariar esta ideia de que as empresas fazem um
favor aos trabalhadores por lhes darem um estágio. A sociedade precisa destas
pessoas e ser integrado é um direito”, sublinha Adriano Campos. As perspectivas
de uma reviravolta desta “lógica instalada” não são, no entanto, animadoras. O
Governo publicou no dia 20 de Março no Diário da República o Reactivar,
programa de estágios de seis meses destinados a maiores de 30 anos inscritos em
centros de emprego há mais de um ano. “É uma extensão da austeridade. Este
Governo especializou-se em ocupar os desempregados com estágios e cursos, e
desde que assumiu funções fez com que se perdessem milhares de postos de
trabalho.”
A empresa onde Maria Manuel está há dois anos com um
contrato a tempo indeterminado mudou o foco e vai deixar de precisar de uma
designer. Em breve estará desempregada. Tal como Joana. O futuro? Provavelmente
passa por emigrar, lamenta Maria Manuel: “Emocionalmente custa-me, mas em
Portugal ou se é empreendedor ou se salta de estágio em estágio. Vamos fazer
estágios até sermos velhinhos? Não é solução.”
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