Não posso deixar de transcrever:
“O leitor lembra-se da primeira viagem que François Hollande
fez após tomar posse? E qual foi a primeira viagem que Passos Coelho fez depois
de tomar posse (embora antes já tivesse feito algumas para o mesmo destino)? Pois,
foram as duas a Berlim para colocar a chanceler Angela Merkel a par dos seus
planos. E ainda se lembram do ex-ministro português das Finanças, Vítor Gaspar,
a pedir delicadamente ajuda ao seu homólogo alemão, Wolfgang Schauble, com este
a dizer-lhe displicentemente que depois de haver resultados se veria? Pois, os gregos
não fizeram nada disso e vieram lembrar-nos que a ordem natural das coisas na
Europa é outra.
O poder na União Europeia está hoje em Berlim. Melhor: está
em Angela Merkel e Wolfgang Schauble e, depois deles, em todas as suas correias
de transmissão, desde primeiros-ministros e governos submissos, a economistas,
universitários, analistas e comentadores, cada qual mais fundamentalista que o
anterior. Ora o primeiro-ministro e o ministro das Finanças gregos, Alexis
Tsipras e Yanis Varoufakis, fizeram algo tão simples como colocar no topo dos
seus interlocutores europeus o Parlamento, a Comissão e os Estados membros sem discriminação.
É algo tão natural que ninguém se devia surpreender. Mas como nos últimos anos
os líderes fracos que governam a Europa (e o presidente da Comissão Europeia,
Durão Barroso, que ocupou o cargo durante uma década) deixaram que o eixo do
poder se movesse para a Alemanha sem qualquer oposição, a decisão grega surge
quase como uma afronta à ordem estabelecida.
Mas não. A ordem que existia até agora é que não é normal. A
Europa foi construída como base na solidariedade e a igualdade entre os Estados
membros e não como uma organização em que manda um e todos os outros obedecem.
E por isso todos nós, europeus, temos de agradecer a Tsipras e a Varoufakis por
estarem a devolver aos europeus o orgulho de pertencerem ao clube mais
solidário e democrático do mundo.
A Europa dos falcões pode derrotar os gregos. Mas não sairá
ilesa deste combate Temos de lhes agradecer igualmente que nos estejam a
mostrar que há mais que um caminho para combater a crise e que não é possível continuar
a insistir na austeridade, com os péssimos resultados sociais, económicos e em
matéria de dívida externa que estão à vista de todos. Temos de lhes agradecer
também que recusem receber ordens de estruturas não sufragadas eleitoralmente,
como o Eurogrupo. E que recusem ainda mais ordens enviadas por e-mail.
Temos de lhes agradecer que se reúnam com ministros das
Finanças dos países da zona euro e não tenham receio em discordar publicamente
deles no final dos encontros. Temos de lhes agradecer que obriguem Wolfgang Schauble
a dizer no final do encontro que «concordámos em discordar». Temos de lhes
agradecer que não andem a negociar de mão estendida e de cerviz curvada. Temos
de lhes agradecer que nos lembrem o que é a dignidade de um povo e o seu
direito a escolher o seu destino e a ser respeitado por isso”.
Nicolau Santos (Jornal Expresso Sexta, 6 de Fevereiro de 2015)
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