Esta terceira
recessão que se inicia, diferente das outras duas anteriores, está voltada para
os países centrais da Zona Euro: Alemanha, França e Itália.
Não há dúvidas de que, quando for escrita a história da
União Europeia e da Zona Euro, será mostrado até que ponto uma religião laica – o neoliberalismo –
pode ser reproduzida apesar de toda a evidência empírica acumulada mostrando
não apenas que tal religião estava equivocada, mas também o enorme prejuízo que
ela está a causar nas classes populares dos países da União Europeia. A religião laica promove-se com um
espírito apostólico, baseado numa fé impermeável à evidência científica,
revelando claramente a sua grande falsidade. Actualmente, esta fé, reproduzida
pela maioria dos órgãos de comunicação social, está anunciando que a Espanha,
Portugal e a Zona Euro estão a recuperar, quando, na realidade, estão a entrar noutra
recessão. Vejamos os dados:
Desde que, no ano de 2007, teve início a Grande Recessão,
que para muitos países foi pior do que a Grande Depressão, houve, na Zona Euro,
nada menos que duas recessões, consequência
da aplicação das políticas neoliberais. A primeira ocorreu no período
2008-2009. Foi seguida de uma rapidíssima recuperação (com um crescimento
económico da Zona Euro de somente 0,5% do PIB) no período 2009-2010, para cair
novamente noutra recessão, que durou 18 meses e que anulou o escassíssimo
crescimento que tinha acontecido na etapa de crescimento anterior. No ano de
2012, iniciou-se outra timidíssima recuperação com um crescimento de somente
0,2% do PIB, recuperação que está a ser novamente revertida, iniciando agora
uma terceira recessão (o PIB da Zona do Euro caiu 0,2%), alcançando três recessões em cinco anos. Um
recorde! Na realidade, a economia da Zona Euro nunca recuperou desde a queda de
2007, quando teve início a Grande Recessão. As pequeníssimas recuperações eram,
mais do que tudo, pequenos saltos do fundo do abismo.
Estamos agora no
início da terceira recessão.
O que é importante sublinhar é que esta terceira recessão
que se inicia, diferentemente das outras duas anteriores, está voltada para
países centrais da Zona do Euro, Alemanha, França e Itália. As outras duas
anteriores tinham-se centrado nos países periféricos, Grécia, Portugal, Espanha
e Irlanda. De certa maneira, esta recessão é consequência da Grande Recessão que,
finalmente, atingiu em cheio o centro e o eixo da Zona Euro. O PIB dos três
países centrais soma 8,8 triliões de euros, que é a dimensão da economia da
China. E dado que a economia da Alemanha (que equivale a um terço do PIB da
Zona Euro) se baseia muito nas exportações, que representam 56% de sua
economia, esta queda da economia do centro da Zona Euro prevê uma desaceleração
da economia mundial.
Os factos políticos que estão a acontecer no continente
europeu, dos quais o conflito da Ucrânia é de grande importância, contribuíram
(apesar de não terem causado) para esta terceira recessão. O golpe de Estado na
Ucrânia, com o apoio dos governos da União Europeia e dos Estados Unidos,
iniciou uma situação de conflito, reavivando a Guerra Fria, que já está a ter
um custo económico considerável. Mas a
principal causa da terceira recessão são as políticas neoliberais baseadas na
austeridade (os infames cortes e o desmantelamento do Estado Social, a
diminuição dos salários e o crescimento do desemprego), que estão a destruir
liminarmente a classe média. E estas políticas estão a ser feitas para
benefício e glória do que antes era chamado o capital, hegemonizado pelo
capital financeiro, e que agora se chama o 1%. Actualmente, o establishment (ou seja, a estrutura do
poder económico, financeiro, mediático e político) europeu, centrado na
Comissão Europeia, no Banco Central Europeu, o Conselho Europeu e o governo
alemão e seus aliados, como o governo Rajoy e o de Passos Coelho, estão a
realizar tais políticas com toda
crueldade, respondendo a cada crise com a resposta previsível de que o facto
de não sair da crise é porque precisam aplicá-las com mais força e
contundência, levando as classes populares à ruína. Três recessões em cinco
anos é o resultado.
O grande drama é que as esquerdas
governantes aceitaram e continuam a aceitar o dogma neoliberal. A sua versão é a versão light das mesmas políticas. Não têm mais a ver com as propostas económicas
dos principais partidos social-democratas de oposição, incluindo o PSOE (em Espanha e cujo novo
secretário-geral enfatizou, em sua entrevista ao El País, como ponto central de
seu programa económico melhorar a competitividade europeia e espanhola) e PS de Seguro (em Portugal), para
perceber que não há uma mudança substancial destas políticas, sob o argumento
de que estas são as únicas possíveis. Acusam as únicas alternativas que permitem
romper com esta série de recessões de utópicas de demagógicas e uma série de epítetos
desqualificativos. A experiência histórica mostra que, para sair desta recessão
crónica (que, repito, alcança dimensões de depressão em muitos países), é
necessária uma mudança quase de 180º da política aplicada.
Há alternativas
Sim, por exemplo, centramo-nos em um dos maiores problemas –
o endividamento das famílias e de grandes e pequenas empresas – a solução é
fácil de ver. Os Estados têm que garantir o crédito, tomando uma série de
medidas, desde mudar a governança do euro e do BCE, estabelecendo o crescimento
económico como objectivo deste Banco, até aumentar a capacidade aquisitiva das
classes populares com um aumento muito notável e massivo do gasto público,
incluindo o gasto em infra-estruturas, não somente físicas, mas sociais do
país, facilitando o alcance da felicidade (sim, leu certo, felicidade) como objectivo
do novo modelo económico-social, e não a acumulação de benefícios do capital. E
tudo isso não acontecerá sem uma profunda democratização das instituições que reflectem
a vontade e a soberania popular. Actualmente, a demanda mais revolucionária
existente na Europa não é a nacionalização dos meios de produção, mas a
exigência de que cada cidadão tenha a mesma capacidade de decisão num país,
enfatizando as formas de participação directa (o direito a decidir todos os
níveis), além de democratizar as escassamente democráticas instituições
representativas.
Exigir democracia com toda contundência e agitação (que deve
excluir qualquer forma de violência) é revolucionário, pois entra em conflito
directo com as estruturas que controlam as instituições que se autodefinem como
democráticas. Também não é afirmar que a propriedade dos meios de produção,
distribuição, persuasão e legitimação é chave para definir o grau de liberdade,
democracia e justiça existente num país.
O grande erro de
muitas esquerdas radicais tem sido limitarem- se à agitação, sem intervir na luta
dentro do Estado. Estas esquerdas devem estar na rua e nas instituições,
exigindo mudanças radicais (ou seja, que vão às raízes do problema de concentração
de poder) contra as quais as estruturas e castas de poder se vão opor de todas
as maneiras. As classes populares poderão alcançar o que desejam se se
mobilizarem. O problema principal existente na Espanha e em Portugal não é o de
a população não estar consciente das enormes limitações da democracia nos seus
países, mas sim não acreditar que isto
possa mudar. Mas a história mostra que sim, que é possível. Ao contrário do
que as estruturas de poder informaram, a mudança das ditaduras para a democracia
aconteceram como consequência da enorme mobilização popular, liderada pelo
movimento dos trabalhadores. Foi esta mobilização que colocou fim às ditaduras.
E esta mobilização pode também forçar mudanças agora, democratizando
autenticamente os países.
[1]
Vicenç Navarro foi Catedrático de Economia Aplicada da Universidade de
Barcelona. Actualmente é Catedrático de Ciências Políticas e Sociais da
Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. É também professor de Políticas
Públicas na Johns Hopkins University (Baltimore, EUA) onde leccionou durante 35
anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado.
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