sexta-feira, 29 de agosto de 2014

REJEITAR A RELIGIÃO LAICA – O NEOLIBERALISMO






Adaptado de Vicenç Navarro [1]

Esta terceira recessão que se inicia, diferente das outras duas anteriores, está voltada para os países centrais da Zona Euro: Alemanha, França e Itália.

Não há dúvidas de que, quando for escrita a história da União Europeia e da Zona Euro, será mostrado até que ponto uma religião laica – o neoliberalismo – pode ser reproduzida apesar de toda a evidência empírica acumulada mostrando não apenas que tal religião estava equivocada, mas também o enorme prejuízo que ela está a causar nas classes populares dos países da União Europeia. A religião laica promove-se com um espírito apostólico, baseado numa fé impermeável à evidência científica, revelando claramente a sua grande falsidade. Actualmente, esta fé, reproduzida pela maioria dos órgãos de comunicação social, está anunciando que a Espanha, Portugal e a Zona Euro estão a recuperar, quando, na realidade, estão a entrar noutra recessão. Vejamos os dados:

Desde que, no ano de 2007, teve início a Grande Recessão, que para muitos países foi pior do que a Grande Depressão, houve, na Zona Euro, nada menos que duas recessões, consequência da aplicação das políticas neoliberais. A primeira ocorreu no período 2008-2009. Foi seguida de uma rapidíssima recuperação (com um crescimento económico da Zona Euro de somente 0,5% do PIB) no período 2009-2010, para cair novamente noutra recessão, que durou 18 meses e que anulou o escassíssimo crescimento que tinha acontecido na etapa de crescimento anterior. No ano de 2012, iniciou-se outra timidíssima recuperação com um crescimento de somente 0,2% do PIB, recuperação que está a ser novamente revertida, iniciando agora uma terceira recessão (o PIB da Zona do Euro caiu 0,2%), alcançando três recessões em cinco anos. Um recorde! Na realidade, a economia da Zona Euro nunca recuperou desde a queda de 2007, quando teve início a Grande Recessão. As pequeníssimas recuperações eram, mais do que tudo, pequenos saltos do fundo do abismo.

Estamos agora no início da terceira recessão.

O que é importante sublinhar é que esta terceira recessão que se inicia, diferentemente das outras duas anteriores, está voltada para países centrais da Zona do Euro, Alemanha, França e Itália. As outras duas anteriores tinham-se centrado nos países periféricos, Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda. De certa maneira, esta recessão é consequência da Grande Recessão que, finalmente, atingiu em cheio o centro e o eixo da Zona Euro. O PIB dos três países centrais soma 8,8 triliões de euros, que é a dimensão da economia da China. E dado que a economia da Alemanha (que equivale a um terço do PIB da Zona Euro) se baseia muito nas exportações, que representam 56% de sua economia, esta queda da economia do centro da Zona Euro prevê uma desaceleração da economia mundial.

Os factos políticos que estão a acontecer no continente europeu, dos quais o conflito da Ucrânia é de grande importância, contribuíram (apesar de não terem causado) para esta terceira recessão. O golpe de Estado na Ucrânia, com o apoio dos governos da União Europeia e dos Estados Unidos, iniciou uma situação de conflito, reavivando a Guerra Fria, que já está a ter um custo económico considerável. Mas a principal causa da terceira recessão são as políticas neoliberais baseadas na austeridade (os infames cortes e o desmantelamento do Estado Social, a diminuição dos salários e o crescimento do desemprego), que estão a destruir liminarmente a classe média. E estas políticas estão a ser feitas para benefício e glória do que antes era chamado o capital, hegemonizado pelo capital financeiro, e que agora se chama o 1%. Actualmente, o establishment (ou seja, a estrutura do poder económico, financeiro, mediático e político) europeu, centrado na Comissão Europeia, no Banco Central Europeu, o Conselho Europeu e o governo alemão e seus aliados, como o governo Rajoy e o de Passos Coelho, estão a realizar tais políticas com toda crueldade, respondendo a cada crise com a resposta previsível de que o facto de não sair da crise é porque precisam aplicá-las com mais força e contundência, levando as classes populares à ruína. Três recessões em cinco anos é o resultado.

O grande drama é que as esquerdas governantes aceitaram e continuam a aceitar o dogma neoliberal. A sua versão é a versão light das mesmas políticas. Não têm mais a ver com as propostas económicas dos principais partidos social-democratas de oposição, incluindo o PSOE (em Espanha e cujo novo secretário-geral enfatizou, em sua entrevista ao El País, como ponto central de seu programa económico melhorar a competitividade europeia e espanhola) e PS de Seguro (em Portugal), para perceber que não há uma mudança substancial destas políticas, sob o argumento de que estas são as únicas possíveis. Acusam as únicas alternativas que permitem romper com esta série de recessões de utópicas de demagógicas e uma série de epítetos desqualificativos. A experiência histórica mostra que, para sair desta recessão crónica (que, repito, alcança dimensões de depressão em muitos países), é necessária uma mudança quase de 180º da política aplicada.

Há alternativas

Sim, por exemplo, centramo-nos em um dos maiores problemas – o endividamento das famílias e de grandes e pequenas empresas – a solução é fácil de ver. Os Estados têm que garantir o crédito, tomando uma série de medidas, desde mudar a governança do euro e do BCE, estabelecendo o crescimento económico como objectivo deste Banco, até aumentar a capacidade aquisitiva das classes populares com um aumento muito notável e massivo do gasto público, incluindo o gasto em infra-estruturas, não somente físicas, mas sociais do país, facilitando o alcance da felicidade (sim, leu certo, felicidade) como objectivo do novo modelo económico-social, e não a acumulação de benefícios do capital. E tudo isso não acontecerá sem uma profunda democratização das instituições que reflectem a vontade e a soberania popular. Actualmente, a demanda mais revolucionária existente na Europa não é a nacionalização dos meios de produção, mas a exigência de que cada cidadão tenha a mesma capacidade de decisão num país, enfatizando as formas de participação directa (o direito a decidir todos os níveis), além de democratizar as escassamente democráticas instituições representativas.

Exigir democracia com toda contundência e agitação (que deve excluir qualquer forma de violência) é revolucionário, pois entra em conflito directo com as estruturas que controlam as instituições que se autodefinem como democráticas. Também não é afirmar que a propriedade dos meios de produção, distribuição, persuasão e legitimação é chave para definir o grau de liberdade, democracia e justiça existente num país.

O grande erro de muitas esquerdas radicais tem sido limitarem- se à agitação, sem intervir na luta dentro do Estado. Estas esquerdas devem estar na rua e nas instituições, exigindo mudanças radicais (ou seja, que vão às raízes do problema de concentração de poder) contra as quais as estruturas e castas de poder se vão opor de todas as maneiras. As classes populares poderão alcançar o que desejam se se mobilizarem. O problema principal existente na Espanha e em Portugal não é o de a população não estar consciente das enormes limitações da democracia nos seus países, mas sim não acreditar que isto possa mudar. Mas a história mostra que sim, que é possível. Ao contrário do que as estruturas de poder informaram, a mudança das ditaduras para a democracia aconteceram como consequência da enorme mobilização popular, liderada pelo movimento dos trabalhadores. Foi esta mobilização que colocou fim às ditaduras. E esta mobilização pode também forçar mudanças agora, democratizando autenticamente os países. 







[1] Vicenç Navarro foi Catedrático de Economia Aplicada da Universidade de Barcelona. Actualmente é Catedrático de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na Johns Hopkins University (Baltimore, EUA) onde leccionou durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado.

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