segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A TERNURA – A SEIVA DO AMOR




Mesmo no coração da actual crise social não podemos esquecer a ternura[1] que subjaz a todos os empreendimentos que envolvem valores e afectam o coração humano.

São misteriosos os caminhos que vão do coração de um homem na direcção do coração de uma mulher e do coração de uma mulher na direcção do coração de um homem. Igualmente misteriosas são as travessias do coração de dois homens e respectivamente de duas mulheres que se encontram e declaram seus mútuos afectos. Desse ir e vir nasce o enamoramento, o amor e por fim o casamento ou a união estável. Como temos a ver com liberdades, os parceiros se encontram inevitavelmente expostos a eventos imponderáveis.

A própria existência nunca é fixada uma vez por todas. Vive em permanente diálogo com o meio. Essa troca não deixa ninguém imune. Cada um vive exposto. Fidelidades mútuas são postas à prova. No matrimónio, passada a paixão, inicia-se a vida quotidiana com a sua rotina cinzenta. Ocorrem desencontros na convivência a dois. Irrompem paixões vulcânicas pelo fascínio de outra pessoa. Não raro, o êxtase é seguido de decepção. Há voltas, perdões, renovação de promessas e reconciliações. Sobejam, no entanto, feridas que, mesmo cicatrizadas, lembram que um dia sangraram.

O amor é uma chama viva que arde – “mas não se sente” – que pode bruxulear e lentamente cobrir-se de cinzas e até apagar-se. Não é que as pessoas se odeiem. Elas ficaram indiferentes umas com as outras. É a morte do amor.

Não basta o amor platónico, virtual ou à distância. O amor exige presença. Quer a figura concreta que é mais que o pele-a-pele mas, o cara-a-cara e o coração sentindo o palpitar do coração do outro.

Bem diz o místico poeta: o amor é uma doença que, nas minhas palavras, só se cura com aquilo que eu chamaria de ternura essencial. A ternura é a seiva do amor. “Se quiseres guardar, fortalecer, dar sustentabilidade ao amor sê terno para com o teu companheiro ou para com a tua companheira”. Sem o azeite da ternura não se alimenta a chama sagrada do amor. Apaga-se.

Que é a ternura? De saída, descartemos as concepções “psicológicas” e superficiais que identificam a ternura como mera emoção e excitação do sentimento face ao outro. A concentração só no sentimento gera o sentimentalismo. O sentimentalismo é um produto da subjectividade mal integrada. É o sujeito que se dobra sobre si mesmo e celebra as suas sensações que o outro provocou nele. Não sai de si mesmo.

Pelo contrário, a ternura irrompe quando a pessoa se descentra de si mesma, sai na direcção do outro, sente o outro como outro, participa da sua existência, deixa-se tocar pela sua história de vida. O outro marca o sujeito. Este demora-se no outro não pelas sensações que lhe produz, mas por amor, pelo apreço da sua pessoa e pela valorização da sua vida e luta. “Eu amo-te não porque és bela; és bela porque te amo”.

A ternura é o afecto que devotamos às pessoas em si mesmas. É o cuidado sem obsessão. A ternura não é efeminação e renúncia de rigor. É um afecto que, à sua maneira, nos abre ao conhecimento do outro. O Papa Francisco, no Rio de Janeiro, falando aos bispos latino-americanos presentes pediu-lhes “a revolução da ternura” como condição para um encontro pastoral verdadeiro.

Na verdade, só conhecemos bem quando nutrimos afecto e nos sentimos envolvidos com a pessoa com quem queremos estabelecer comunhão. A ternura pode e deve conviver com o extremo empenho por uma causa, como foi exemplarmente demonstrado pelo revolucionário absoluto Che Guevara (1928-1968). Dele guardamos a sentença inspiradora: “hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”. A ternura inclui a criatividade e a auto-realização da pessoa junto e através da pessoa amada.

A relação de ternura não envolve angústia porque está liberta de procurar vantagens e de dominação. O enternecimento é a força própria do coração, é o desejo profundo de compartir caminhos. A angústia do outro é minha angústia, o seu sucesso é meu sucesso e a sua salvação ou perdição é minha salvação ou a minha perdição e, no fundo, não só a minha mas a de todos.

Blaise Pascal(1623-1662), filósofo e matemático francês do século XVII, introduziu uma distinção importante que nos ajuda a entender a ternura: o “esprit de finesse e o “esprit de géometrie”.

O “esprit de finesse” é o espírito de delicadeza, de sensibilidade, de cuidado e de ternura. O espírito não só pensa e raciocina; vai além, porque acrescenta ao raciocínio sensibilidade, intuição e capacidade de sentir em profundidade. Do “esprit de finesse” nasce o mundo das excelências, dos grandes sonhos, dos valores e dos compromissos para os quais vale despender energias e tempo.

O “esprit de géometrie” é o espírito calculador e obreiro, interessado na eficácia e no poder. Mas onde há concentração de poder aí não há ternura nem amor. Por isso pessoas autoritárias são duras e sem ternura e, às vezes, sem piedade. Mas é o modo-de-ser que imperou na modernidade, que coloca a um canto, sob muitas suspeitas, tudo o que tem a ver com o afecto e a ternura.

Daí se deriva também o vazio aterrador da nossa cultura “geométrica” com a sua profusão de sensações, mas sem experiências profundas; com um acumular fantástico de saberes, mas com parca sabedoria, com demasiado vigor da musculação, da sexualidade, dos artefactos de destruição mostrados nos serial killer mas sem ternura e cuidado de uns para com os outros, para com a Terra, para com os seus filhos e filhas, para com o futuro comum de todos.

O amor e a vida são frágeis. A sua força invencível vem da ternura com a qual os cercamos e sempre os alimentamos.




[1] Em Leonardo Boff, autor de A força da ternura; Mar de Ideias, Rio 2012.

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