Mesmo no coração da actual crise social não podemos esquecer
a ternura[1]
que subjaz a todos os empreendimentos que envolvem valores e afectam o coração humano.
São misteriosos os caminhos que vão do coração de um homem na
direcção do coração de uma mulher e do coração de uma mulher na direcção do coração
de um homem. Igualmente misteriosas são as travessias do coração de dois homens
e respectivamente de duas mulheres que se encontram e declaram seus mútuos afectos.
Desse ir e vir nasce o enamoramento, o amor e por fim o casamento ou a união estável.
Como temos a ver com liberdades, os parceiros se encontram inevitavelmente expostos
a eventos imponderáveis.
A própria existência nunca é fixada uma vez por todas. Vive em
permanente diálogo com o meio. Essa troca não deixa ninguém imune. Cada um vive
exposto. Fidelidades mútuas são postas à prova. No matrimónio, passada a paixão,
inicia-se a vida quotidiana com a sua rotina cinzenta. Ocorrem desencontros na convivência
a dois. Irrompem paixões vulcânicas pelo fascínio de outra pessoa. Não raro, o êxtase
é seguido de decepção. Há voltas, perdões, renovação de promessas e reconciliações.
Sobejam, no entanto, feridas que, mesmo cicatrizadas, lembram que um dia sangraram.
O amor é uma chama viva que arde – “mas não se sente” – que pode bruxulear e lentamente cobrir-se de cinzas
e até apagar-se. Não é que as pessoas se odeiem. Elas ficaram indiferentes umas
com as outras. É a morte do amor.
Não basta o amor platónico, virtual ou à distância. O amor exige
presença. Quer a figura concreta que é mais que o pele-a-pele mas, o cara-a-cara
e o coração sentindo o palpitar do coração do outro.
Bem diz o místico poeta: o amor é uma doença que, nas minhas
palavras, só se cura com aquilo que eu chamaria de ternura essencial. A ternura
é a seiva do amor. “Se quiseres guardar, fortalecer, dar sustentabilidade ao amor
sê terno para com o teu companheiro ou para com a tua companheira”. Sem o azeite
da ternura não se alimenta a chama sagrada do amor. Apaga-se.
Que é a ternura? De saída, descartemos as concepções “psicológicas”
e superficiais que identificam a ternura como mera emoção e excitação do sentimento
face ao outro. A concentração só no sentimento gera o sentimentalismo. O sentimentalismo
é um produto da subjectividade mal integrada. É o sujeito que se dobra sobre si
mesmo e celebra as suas sensações que o outro provocou nele. Não sai de si mesmo.
Pelo contrário, a ternura irrompe quando a pessoa se descentra
de si mesma, sai na direcção do outro, sente o outro como outro, participa da sua
existência, deixa-se tocar pela sua história de vida. O outro marca o sujeito. Este
demora-se no outro não pelas sensações que lhe produz, mas por amor, pelo apreço
da sua pessoa e pela valorização da sua vida e luta. “Eu amo-te não porque és bela;
és bela porque te amo”.
A ternura é o afecto que devotamos às pessoas em si mesmas. É
o cuidado sem obsessão. A ternura não é efeminação e renúncia de rigor. É um afecto
que, à sua maneira, nos abre ao conhecimento do outro. O Papa Francisco, no Rio
de Janeiro, falando aos bispos latino-americanos presentes pediu-lhes “a revolução
da ternura” como condição para um encontro pastoral verdadeiro.
Na verdade, só conhecemos bem quando nutrimos afecto e nos sentimos
envolvidos com a pessoa com quem queremos estabelecer comunhão. A ternura pode e
deve conviver com o extremo empenho por uma causa, como foi exemplarmente demonstrado
pelo revolucionário absoluto Che Guevara
(1928-1968). Dele guardamos
a sentença inspiradora: “hay que endurecer,
pero sin perder la ternura jamás”. A ternura inclui a criatividade
e a auto-realização da pessoa junto e através da pessoa amada.
A relação de ternura não envolve angústia porque está
liberta de procurar vantagens e de dominação. O enternecimento é a força própria
do coração, é o desejo profundo de compartir caminhos. A angústia do outro é minha
angústia, o seu sucesso é meu sucesso e a sua salvação ou perdição é minha salvação
ou a minha perdição e, no fundo, não só a minha mas a de todos.
Blaise Pascal(1623-1662), filósofo e matemático francês do século
XVII, introduziu uma distinção importante que nos ajuda a entender a ternura: o
“esprit de finesse” e o
“esprit de géometrie”.
O “esprit de finesse” é o espírito de delicadeza, de sensibilidade,
de cuidado e de ternura. O espírito não só pensa e raciocina; vai além, porque acrescenta
ao raciocínio sensibilidade, intuição e capacidade de sentir em profundidade. Do
“esprit de finesse” nasce o mundo das excelências, dos grandes sonhos, dos
valores e dos compromissos para os quais vale despender energias e tempo.
O “esprit de géometrie” é o espírito calculador e obreiro,
interessado na eficácia e no poder. Mas onde há concentração de poder aí não há
ternura nem amor. Por isso pessoas autoritárias são duras e sem ternura e, às vezes,
sem piedade. Mas é o modo-de-ser que imperou na modernidade, que coloca a um canto,
sob muitas suspeitas, tudo o que tem a ver com o afecto e a ternura.
Daí se deriva também o vazio aterrador da nossa cultura “geométrica”
com a sua profusão de sensações, mas sem experiências profundas; com um acumular
fantástico de saberes, mas com parca sabedoria, com demasiado vigor da musculação,
da sexualidade, dos artefactos de destruição mostrados nos serial killer
mas sem ternura e cuidado de uns para com os outros, para com a Terra, para com
os seus filhos e filhas, para com o futuro comum de todos.
O amor e a vida são frágeis. A sua força invencível vem da ternura
com a qual os cercamos e sempre os alimentamos.
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