A maior revolução religiosa
Frei Bento Domingues
O.P.
A conversa sobre o papel
das mulheres na Igreja não avança porque não se liga nada à importância que
Jesus lhes atribuiu
1 É muito complexa a história do povo samaritano.
Segundo a investigação de 2019, existiam apenas 820 samaritanos. Parece que num
passado remoto ultrapassaram o milhão [1]. Apesar da sua reduzida expressão
numérica actual, a liturgia cristã não os pode esquecer. Ao longo do ano
litúrgico, são muitas as referências, extremamente simpáticas, dedicadas a esse
povo semita que era detestado pelos judeus por ter conservado, da herança
comum, apenas o Pentateuco e ter levantado um lugar de culto rival do templo de
Jerusalém. Mas porque será que os textos do Novo Testamento construíram, por
contraste, figuras
samaritanas que apresentam como exemplares para todos os tempos e lugares?
Esses textos não são as actas
factuais do comportamento de Jesus de Nazaré. São interpretações contextuais
dos seus atrevimentos, mas não há dúvida de que este galileu insólito não
suportava aquele ódio fratricida nem a justiça do olho por olho, dente por
dente [2]. Esses textos de inapagável beleza atribuem a um judeu a
apresentação de figuras
samaritanas — figuras
de um povo rival — como exemplo do que deve ser um discípulo da Lei Nova do
Evangelho. O Nazareno não fazia acepção de pessoas. Tanto curava judeus como
samaritanos ou gentios. Eram doentes, e só por isso deviam ser socorridos sem
mais considerações. Mesmo assim, destaca que entre os dez leprosos curados só
um samaritano veio agradecer.
Segundo o Evangelho de S.
Mateus, quem mais precisava de conversão era Israel e, por isso, é em primeiro
lugar às ovelhas perdidas deste povo que se dirige a intervenção de Jesus [3].
Paulo também começou a sua pregação pelas sinagogas, pelos judeus. Mas depressa
descobriu que, em Jesus, não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não
há homem nem mulher, não há circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo
ou livre. O que importa é que a vida e a mensagem de Cristo sejam tudo em todos
[4]. Existem, no entanto, narrativas de ruptura, de natureza altamente
simbólica, que são dedicadas a exaltar figuras samaritanas. Comecemos por uma que é proclamada,
hoje, na Eucaristia e constitui uma radical revolução religiosa. Pertence ao
capítulo 4.º do Evangelho de S. João e está disponível online.
2. Jesus estava de viagem e parou, em Sicar, cidade da
Samaria, enquanto os discípulos foram procurar alimentos. Estava cansado,
sozinho, com muita sede e sentou-se junto do famoso poço de Jacob de
profundidade excepcional (32 metros!), com água sempre fresca mesmo sob o sol
escaldante do meio-dia.
Entretanto, veio uma mulher
da Samaria para tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. A
samaritana espantou-se: Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, a
mim, que sou samaritana? Jesus muda de registo. Se conhecesses o dom que
Deus tem para dar e quem te pede: dá-me de beber, tu é que lhe pedirias, e Ele dar-te-ia
água viva! A mulher goza com esse despropósito: Senhor, não tens sequer
um balde e o poço é fundo... Onde consegues, então, a água viva? Porventura és
mais do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço donde beberam ele,
os seus filhos e os seus rebanhos?
Jesus retoma a iniciativa: Todo
aquele que bebe desta água voltará a ter sede; mas quem beber da água que Eu
lhe der nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há-de tornar-se nele em
fonte de água que dá a vida eterna. A mulher aproveita a deixa: Senhor,
dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la.
Como não era bem visto falar
com uma mulher em público sem o marido, Jesus diz-lhe: Vai, chama o teu
marido e volta cá. A mulher retorquiu-lhe: Não tenho marido. Jesus revela
a situação real desta samaritana extraordinária: Disseste bem: não tenho
marido, pois tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido. Nisto falaste
verdade. A mulher não se deu por achada: Vejo que és um profeta!
Então explica-me: Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte, e vós
dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém.
3. Começa a revolução: Jesus declarou-lhe: Mulher,
acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte nem em Jerusalém,
haveis de adorar o Pai.
Ainda tentou afirmar a superioridade judaica,
mas deu-se conta de que isso já não fazia sentido. Chegou a hora em que os
verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois
são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que o
adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.
Ainda hoje, 2020, se procura
vencer a violência louca em nome de Deus por meio do diálogo inter-religioso. É
a única alternativa defensável. Acontece, porém, que, em muitos desses
diálogos, cada um dos intervenientes não vai além de manifestar aquilo em que
está de acordo e o que julga inaceitável. Raros são os que fazem a autocrítica
das instituições a que pertencem. Os diálogos repetem-se, mas não fazem avançar
para uma nova plataforma que os transfigure e transfigure as suas problemáticas religiosas.
O insólito encontro da
samaritana com Jesus venceu os preconceitos de que ambos partiram. A mulher
pressente em Jesus o Messias esperado e ele confirma-o. O espantoso é que ela abandona o cântaro. Tinha
encontrado outra água e vai a correr à cidade levar a boa nova que descobriu.
Não pede que acreditem nela. Vai apenas dar o seu testemunho, levantar uma
séria interrogação messiânica e propor aos seus conterrâneos que sejam eles a
verificar.
Foram e pediram a Jesus que ficasse
com eles. “Então, muitos mais acreditaram nele por causa da sua pregação e
diziam à mulher: Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios
ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo.” É a única vez
que esta confissão
pública e solene aparece no Evangelho de João.
A conversa sobre o papel das
mulheres na Igreja não avança porque não se liga nada à importância que Jesus
lhes atribuiu.
P.S. — O Evangelho de João é o mais sacramental. É
também o da maior revolução religiosa, como vimos. Dadas as circunstâncias da
covid-19, não seria de estranhar que a Conferência Episcopal Portuguesa
cancelasse as celebrações da Quaresma e da Páscoa que manifestem riscos de
contágio. O culto em espírito e verdade não depende das celebrações litúrgicas.
Em Lucas, também há um contraste ético entre os zeladores do templo que viram e
não ligaram e o herético samaritano que viu e socorreu (Lc 10, 29-37).
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[1] Para quem desejar conhecer a história do
povo samaritano, a Wikipédia é muito abundante na informação, referindo as
fontes em que se baseia
[2] Lc 9, 52-56
[3] Mt 10, 5-6; Act 8, 5; 13, 44-47
[4] Gal 3, 27-28; Cl 3, 11