O Papa Francisco foi confrontado por uma menina, no Vaticano,
que o questionou porque, sendo papa, tendo direito a viver no luxo, a ter
grandes e faustosos carros, a viver no máximo dos confortos […] o não fazia. Francisco respondeu-lhe: “já
me fizeram essa pergunta; foi um professor que a fez. Eu respondi-lhe que isto
era um problema do foro psiquiátrico…”.
Francisco, confrontado pelos jornalistas acerca do que
pensava sobre os homossexuais frequentarem a Igreja, respondeu: “Quem sou eu
para os julgar…?”
Mas, já é um quarto dos Cardeais que pretendem a sua
condenação – excomunhão.
Frei Bento Domingues, no Público de 17 de Dezembro, escrevia:
“Jesus Cristo não desejou nem santificou a cruz.
Alterou-lhe, porém, a significação de forma radical.”
E escreveu muito mais:
“[…] hoje podemos
acolher a graça da nossa transformação interior que nos associe, de forma
activa, às mais diversas iniciativas sociais, culturais e políticas da
construção de uma cultura da justiça e da paz, a nível local e global. O
Espírito do Natal é Aquele que suscitou o canto subversivo de Maria de Nazaré.
As preocupações com as indispensáveis reformas das “cozinhas
eclesiásticas” da Igreja, se não estiverem centradas no estilo da prática
histórica de Jesus Cristo e nas urgências dos mais carenciados das nossas
sociedades, acabam por nos fazer esquecer que somos nós, [ou que é] a Igreja,
que precisamos de reforma permanente.
Frederico Lourenço
— a grande figura portuguesa da cultura bíblica fora das sacristias —
recorda-nos que os Evangelhos têm, ainda hoje, em 2017, o potencial para mudar
o mundo para radicalmente melhor. Sublinha comovido: “Jesus Cristo, com as
palavras que lhe são atribuídas nos quatro evangelhos, é a figura que mais me
interessa. Continuo a achar que, independentemente de ele ter dito aquelas
palavras ou não, elas são as coisas mais extraordinárias que foram ditas à face
da terra. Por exemplo, quando leio para mim o Novo Testamento estou num mundo
maravilhoso que é só meu e me preenche muito, animicamente, espiritualmente.
Apesar de ser um linguista crítico-histórico, não sou um ateu a traduzir a
Bíblia. Serei sempre, até ao último segundo da minha vida, um apaixonado por
esse judeu chamado Jesus de Nazaré.”[1]
Muitos anos antes, numa entrevista de 1978, Eduardo Lourenço mostrou a verdade da
nossa condição, na própria referência cristã: “Cristo é o momento (sem limite
de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. [...] Foi crucificado, não
por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos
passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição.”[2]
Num belo livro, traduzido por José Sousa Monteiro, deparo
com a confissão do marxista Milan
Machovec: “O coração duma freira desconhecida que se dedica a uma criança
incurável, só poderia ser substituída por uma teoria da história, por um
estúpido e um idiota [...]. Pessoalmente, não me traria grande desgosto o facto
de a religião acabar. Mas se tivesse de viver num mundo no qual Jesus fosse
inteiramente esquecido, então preferia não continuar a viver”[3].
Como escreveu o dominicano
E. Schillebeeckx, para Jesus, a história dos seres humanos é a narrativa de
Deus acolhido ou recusado[4].
Para o imaginário do Evangelho de S. Lucas, a festa do
nascimento de Jesus aconteceu num curral iluminado pela luz do céu, acompanhada
pela música dos anjos e rodeado de pastores e estrangeiros. Tudo aconteceu à
margem do Templo de Jerusalém e dos palácios imperiais. Aliás, Jesus com o comércio
do Templo teve uma relação muito agreste e só conheceu os palácios quando
estava a ser julgado e condenado à pena capital. A sua coroa foi de espinhos e
o seu trono foi uma cruz.
Esta apresentação testemunha um profundo contraste, mas pode
cair na perversão do próprio Evangelho de Cristo, sugerindo que Jesus veio
sacrificar-se e semear mais sacrifícios no mundo. Porque será mantida a cruz
como símbolo cristão, quando o que Jesus procurava era, precisamente, descrucificar?
A minha hipótese de interpretação é outra, bastante simples,
mas que importa explicar. A cruz, a sentença de morte mais bárbara e cruel,
fazia parte do mundo que Jesus queria mudar. Então, por que continua a funcionar como um símbolo cristão, quando ela
é anti-humana, anticristã?
Ao contrário do que se repete há séculos, Jesus Cristo não
desejou nem santificou a cruz. Alterou-lhe, porém, a significação de forma
radical. Foi-lhe imposta, num julgamento iníquo, por ele recusar trair o seu
projecto. Tornou-se, deste modo, o símbolo da fidelidade inquebrantável, o
signo da extrema generosidade. A presença de sinais da cruz, desde o baptismo
até à morte, diz que é preciso dizer não à crucifixão da vida e dizer sim à
generosidade libertadora, no dia-a-dia.
Tudo isto vem confirmado no trecho do Evangelho escolhido
para a celebração da […]: estava Jesus sentado junto ao mar da Galileia e uma
grande multidão veio ter com ele e lançou-lhe, aos pés, coxos, aleijados,
cegos, mudos e muitos outros[5].
Se o mestre fosse um
pregador de sacrifícios dizia-lhes: estais mal? Ainda bem. Assim podeis
santificar-vos e, um dia, sereis muito felizes no céu. [puro marketing]
Jesus não acreditava nessa mística. Curou-os e organizou,
com pouca coisa, um grande banquete popular. A multidão ficou admirada ao ver
os mudos a falar, os aleijados a ficar sãos, os coxos a andar, os cegos a ver e
todos a comer até sobrar.
Poder-se-á dizer: porque não deixou a fórmula? Seria uma
alternativa muito barata dos serviços de saúde, públicos e privados. Mas ele
não veio para nos substituir.
Já na apresentação do seu programa, em Nazaré, ficou claro
que o mundo tinha de começar mesmo a mudar. Deus não podia ser O da ira de Iavé, mas O da pura graça do amor. Diz a narrativa evangélica que, nesse
momento, os seus conterrâneos o julgaram um subversivo e, por isso, quiseram
acabar logo com ele[6].
Os seus comportamentos eram, de facto, estranhos: andava em más companhias, com quem
comia e bebia, a ponto de lhe chamarem “comilão
e beberrão”; aceitou o convívio de
mulheres que não eram todas exemplos de virtude; violava, sistematicamente, o Sábado[7]
— o dia mais sagrado da sua religião — com curas que bem podia fazer noutros
dias[8].
Não deixou fórmulas ou receitas que pudessem ser
transformadas em rituais. A sua prática é um desafio à imaginação de todos os
homens e mulheres, de todos os tempos, a usarem os seus talentos, as suas
capacidades, não para cavar distância
entre ricos e pobres, mas para as eliminar, pois não suporta ver uns à
porta e outros à mesa, uns em banquetes requintados e outros na miséria[9]”.
Será tudo isto do foro psiquiátrico?
A nossa vida vive-se agora…!
[1] Frederico
Lourenço, Entrevista, in Ler, Outubro 2017, n.º 147
[2] Eduardo
Lourenço, in Opção, n.º 97, pp. 2-8, Março 1978
[3] Cf. VV.
AA., Os marxistas e Jesus, Iniciativas Editoriais, Lisboa 1976, pp. 88 e
98
[4] Edward Schillebeeckx, L’histoire
des hommes, récit de Dieu, Cerf, Paris 1992
[5] Mt 15, 29-37
[6] Lc 4, 16-30
[8] Lc 7; 8; 13, 10-17
[9] Lc 16, 19-31