Temos, cada vez mais, educadores do povo… intolerantes!
Critica-se o uso do véu islamita, mas condescende-se com o
hábito das freiras. Há uma quantidade de gente – os especialistas da
generalidade – conhecedora de todas as matérias; essas matérias poderão ir da
simples discussão do materialismo dialéctico e ideológico à mais profunda
análise teológica relativa a qualquer religião, mesmo sem a conhecer e sem
saber ou respeitar o mais elementar princípio de consideração por quem nos
rodeia. Conheça ou não os assuntos em discussão, têm sempre uma opinião a
transmitir e uma verdade a defender – é sempre a oportunidade de opinarem.
Pior que um sofista, é um sofista intolerante.
Numa perspectiva de diálogo e respeito por quem connosco
convive, deveríamos estar do lado de quem busca a verdade, e ter a humildade de
quem quer saber e conhecer.
Quando, por um lado, nos confrontamos com religiões que
estão em maioria, naturalmente aceitamo-las; se, pelo contrário, a religião se quedar
por uma minoria, deveria haver, pelo menos, a intenção de respeitá-las.
Não pretendo perceber ou defender verdades religiosas “absolutas”,
mas, tão-só, poder compreender as razões que eventualmente estarão por de trás
de quem as segue. Não quero vestir a roupa de quem necessita de um rótulo de
isenção (como aqueles que se afirmam agnósticos, para discutirem
tendenciosamente a religião, imbuídos de aparente independência) e, por isso,
não vou dizer se sou agnóstico, se sou ateu ou, simplesmente, se sou um
confesso religioso.
Eis porque gostaria, na minha humilde ânsia de esclarecer e
ser esclarecido, deixar à consideração o brilhante texto do Professor Dr. P.e
Anselmo Borges, publicado, a 5 de Maio de 2017, no DN,
que, sendo padre é acusado por muitos ateus, crentes e agnósticos de não se manifestar
suficientemente “à altura daquela igreja tradicional e pré-conciliar”:
«1 - Um problema maior deste tempo são a pressa, a imediatidade, a
fragmentação. Alguém pára para pensar, para verdadeiramente se informar,
reflectir? Alguém lê livros? Sim, livros? Porque um livro, quando é bom, dá que
pensar, e tem princípio e meio e fim e aberturas para lá dele e é preciso
dialogar com ele e os seus pressupostos e os seus horizontes. Mesmo num jornal,
lê-se a notícia toda ou só o título? Afinal, um dos grandes perigos de hoje é
que se vive de flashes, de impressões, na vertigem de um tsunami de informações
e opiniões dispersas, intoxicantes.
No passado dia 14 de Abril, o jornal Expresso
titulava na primeira página: "É evidente que Nossa Senhora não apareceu em
Fátima" (Anselmo Borges). E remetia para uma entrevista na página 22. É
claro que quem só leu este título ficou enganado. É verdade que eu disse
aquilo. Mas quem foi ler a entrevista? Quem leu encontrou o que é fundamental:
a necessária distinção entre "aparição" e "visão":
"Posso ser um bom católico e não acreditar em Fátima porque não é dogma.
Não me repugna, contudo, que as crianças, os chamados três pastorinhos, tenham
tido uma experiência religiosa, mas à maneira de crianças e dentro dos esquemas
religiosos da altura. É preciso também distinguir aparições de visões. É
evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima. Uma aparição é algo
objectivo. Uma experiência religiosa interior é outra realidade, é uma visão, o
que não significa necessariamente um delírio, mas é subjectivo. É preciso fazer
esta distinção."
Como já aqui expliquei, é evidente que Maria
não apareceu fisicamente em Fátima, pois o crente na vida plena e eterna em
Deus sabe que essa vida é uma nova criação, para lá do espaço e do tempo; não é
segundo o modo da vida neste mundo. Mesmo a
ressurreição de Jesus não é a reanimação do cadáver, é evidente, e, por
isso, está para lá das manifestações
físico-empíricas. Eu acredito na vida eterna e que Jesus está vivo em Deus.
Como é? Ninguém sabe. As grandes experiências, as que decidem da vida e da
morte e do sentido da existência e da história, são interiores. É neste
dinamismo que estão as experiências da fé religiosa, mesmo se – a experiência
nunca é pura, nua – se dão no quadro de esquemas, figuras e imagens
interpretativos, segundo as situações, os tempos e os contextos. O referente – pólo objectivo – é sempre o mesmo: o
Mistério, o Sagrado, Deus, Presença transcendente-imanente, que o crente – pólo subjectivo – experiencia como
Fundamento e Fonte de salvação.
Percebe-se então que há experiências
religiosas melhores e outras menos boas. E lá está na entrevista: “E por isso digo que é necessário
evangelizar Fátima, ou seja, trazer uma notícia boa. Porque mesmo para aquelas
crianças aquela não foi uma notícia boa: que mãe mostraria o inferno a uma
criança?”
2 - Qual
é o núcleo da mensagem de Fátima? Em primeiro lugar, a oração. É uma grande
mensagem? É. Para crentes e não crentes.
Quem não precisa de rezar? Não necessariamente dizendo orações, embora os
cristãos tenham a oração essencial que Jesus ensinou: “o pai-nosso”, onde está
o núcleo da vida: a ligação à Transcendência, que é Amor; que o Reino de Deus
venha: o Reino da verdade, da justiça, da dignidade livre e da liberdade na
dignidade para todos e que lutemos por isso; a gratidão face ao milagre
exaltante da Vida; o pão para todos; o milagre do perdão; a atenção ao
essencial da vida, para se não cair na tentação da desgraça, do mal que fazemos
a próprios e aos outros. A oração
implica parar para escutar o silêncio e o que só no silêncio se pode ouvir:
a voz da consciência e da dignidade,
meditar, descer ao mais fundo de si, lá onde se encontra a ligação com a Fonte,
donde tudo vem e onde tudo se religa e se faz a experiência do transtempo, para
se poder viver no tempo sem se afundar na dispersão e no vazio.
A outra mensagem: “Fazei sacrifício e
penitência.” E aquelas crianças até a pouca comida que tinham davam às ovelhas
pela conversão dos pecadores.
Fátima precisa de ser evangelizada. Evangelho
quer dizer notícia boa e felicitante, mas, frequentemente, como bem viu
Nietzsche, o que se anunciou foi um Disangelho: uma notícia desgraçada e que
arrastou consigo imensa infelicidade. No Evangelho segundo São Marcos, Jesus
inicia a sua vida pública, proclamando: “Metanoiete”, cuja tradução normalmente
é: “Fazei penitência”, mas realmente o que lá está é: mudai de mentalidade, de modo de pensar; portanto, mudai de vida,
de mentalidade, de atitude, e acreditai no Evangelho. Jesus anunciava: “Ide
aprender o que isto quer dizer: Deus não quer sacrifícios, mas justiça e
misericórdia.” O que Jesus declarava era uma boa-nova: Deus é Amor, Fonte de
vida, Liberdade criadora, que quer a vossa felicidade. “Não tenhais medo”, é
outra palavra constante de Jesus. Mas, realmente,
o que se pregou muitas vezes foi um deus da tristeza, do medo, do terror,
chegando-se ao limite de pregar que Deus precisou da morte do próprio Filho
para se reconciliar com a humanidade. Foi deste deus que Nietzsche proclamou a
morte, porque perante um deus assim só se pode desejar que morra.
É completamente diferente o que está no
Evangelho. Jesus não foi morto para aplacar a ira de Deus, Ele entregou-se à
morte e morte de cruz para dar testemunho da Verdade e do Amor: o único
interesse de Deus é que os homens e as mulheres, todos, sejam plenamente
realizados e felizes. Esse é o sentido do sacrifício: não o sacrifício pelo
sacrifício, mas o sacrifício que traz vida. O sacrifício pelo sacrifício não vale nada, mas, por outro lado,
sem sacrifício, nada de grande, de verdadeiramente valioso, se realiza. “Mudai
de mentalidade”: batei-vos pela vida,
pela justiça, pela paz, pela felicidade, pelos direitos e pela dignidade divina
de cada homem e de cada mulher, de todos. Sacrificai-vos por isso. É o que
Deus quer e o que vale a pena. Para sempre.»