O projecto de
Frederico Lourenço, assumido pela Quetzal, não se limita a uma nova tradução do
Novo Testamento, mas à tradução de toda a Bíblia Grega, judaica e cristã.
1. Como
escreveu, em 2016, o Prof. José Augusto Ramos, o universo cultural, editorial,
científico e académico português foi recentemente presenteado com o
aparecimento do primeiro volume de uma tradução da Bíblia grega, conceito que
nos tem sido estranho, desde há muitos séculos[1].
Este ano, nos finais de Março, Frederico Lourenço inundou todas as livrarias
com o segundo volume da tradução da Bíblia grega, o Novo Testamento completo,
escrito há quase 2000 anos, cujo original é irrecuperável. Esta tradução está
baseada no texto fixado por Nestle-Aland[2].
Para F. Lourenço, a
leitura comparativa dos evangelhos canónicos e dos restos que nos chegaram dos
apócrifos não deixa qualquer dúvida quanto à imprescindibilidade de Marcos,
Mateus, Lucas e João, talvez os livros mais extraordinários da História da Humanidade.
Um padre, espantado
com este fenómeno, perguntou-me: mas esse tradutor é padre? Quando lhe respondi
que não era padre nem ex-padre, não era católico nem protestante e que neste
trabalho prescinde, metodologicamente, de pressupostos religiosos, mostrou-se
desconfiado. Aí há gato!
O que há, de facto, é
talento, competência e muito trabalho. Convidei esse clérigo apreensivo a ler o
currículo do tradutor que vem nas capas de ambos os volumes e acrescentei o meu
pressentimento: com esta aparição, Frederico Lourenço e os responsáveis da
Quetzal Editores vão alterar o clima cultural da Bíblia, no nosso país. Não
esperam canonizações, mas merecem avaliações críticas competentes[3].
Pensar que o estudo da
Bíblia e as suas traduções só merecem confiança se forem obra de clérigos e de
editoras católicas submetidos ao Imprimatur episcopal é supor que a
Bíblia é propriedade privada de empresas confessionais. Que os responsáveis das
comunidades católicas zelem pela formação bíblica dos seus membros e pelas
expressões da fé cristã é o mínimo que se lhes pode pedir. Infelizmente, nem
sempre cumprem esta missão.
Ninguém tem o
monopólio da Bíblia e só há vantagens em que seja reconhecida e trabalhada como
o “Livro dos livros”, a expressão das raízes judeo-cristãs da civilização
ocidental. Há muito a fazer para se tornar parte activa da cultura portuguesa,
nas suas diversas expressões. Criticam-se, e com razão, as correntes sociais,
políticas e culturais que desejam fechar as religiões nas respectivas
sacristias. Mas seria lamentável que as sacristias amuassem ao ver essa
literatura religiosa estudada e debatida com toda a liberdade, no espaço
público.
Herculano Alves
reuniu, numa obra muito útil, os Documentos da Igreja sobre a Bíblia, desde o
ano 160 a 2010[4].
No começo deste ano, foi lançado pela Biblioteca Dominicana o testemunho
incontornável de Marie-Joseph Lagrange, O.P., sobre os tormentos que sofreu do
Vaticano e das invejas eclesiásticas organizadas para impedir as inovadoras
investigações e publicações científicas da Escola Bíblica de Jerusalém, nos
finais do século XIX e nos primeiros 30 anos do século XX[5].
Quem comparar a miséria cultural dessa situação com o documento da Comissão
Pontifícia Bíblica, de 15 de Abril de 1993[6],
pode ter a impressão de que não pertencem à mesma Igreja.
Não reconhecer a
importância de colocar a Bíblia no espaço público, segundo as exigências
culturais do nosso tempo, só pode alimentar a suspeita de que a razão crítica é
inimiga da religião, das suas linguagens e das suas práticas.
2. O projecto de
Frederico Lourenço, assumido pela Quetzal, não se limita a uma nova tradução do
Novo Testamento, do qual já existem várias, de diversos estilos, mas à tradução
de toda a Bíblia grega, judaica e cristã. A Bíblia judaica e a Bíblia hebraica
não se identificam, como se a grega não fosse, também, judaica. A grega,
designada como Septuaginta (LXX), é a primeira tradução da Bíblia[7]
e o seu nome designa a tradução da Torah hebraica para o grego,
realizada em Alexandria durante o reinado de Ptolomeu II (285-246 a.C.).
Segundo a lenda,
setenta sábios de Jerusalém, conhecedores do hebraico e do grego, partiram para
Alexandria, cidade com grande população judaica, mas onde se falava sobretudo o
grego. Cada um tinha o seu quarto particular e a obrigação de traduzir as
Escrituras. Começaram todos ao mesmo tempo e terminaram todos ao fim de setenta
dias. Ao conferi-las, verificaram que todos tinham traduzido da mesma maneira.
Para lenda e milagre não está mal.
A dita versão
constituiu um acontecimento cultural sem precedentes e a iniciativa literária
mais importante para os anais da civilização. Pela primeira vez, a sabedoria de
Israel passava de uma língua semita para outra indo-europeia e, por aí, ao
mundo ocidental.
3. Quando,
séculos mais tarde, a LXX foi adoptada pelas primeiras comunidades cristãs,
como a Bíblia oficial, acompanhou a expansão do cristianismo, tanto no Oriente
como no Ocidente.
A partir do séc. V
d.C., a LXX foi destronada, no Ocidente, pela tradução de S. Jerónimo para
latim, denominada a Vulgata. Esta versão dominou a cultura ocidental
durante a Idade Média. Foi declarada como autêntica, isto é, fiável em matéria
de fé e costumes, pelo Concílio de Trento (1546). Na Igreja Ortodoxa, a Bíblia
grega manteve-se como Bíblia oficial ou canónica até aos nossos dias.
Outro foi o rumo das
traduções da Bíblia na Reforma. Espero que, entre nós, o nome de Lutero tenha
deixado de ser considerado um insulto.
[1] Cadmo 25
(2016) 101-113. Cf. também de José Augusto Ramos, Traduções Portuguesas da
Bíblia Transversalidades Linguístico-Culturais em Tarefas de Hoje, Gaudium
Sciendi, Nº 3, Janeiro 2012, pp 124-146
[2] Entre
1898 e 2012 atingiu 28 edições
[3] Cf. José
Augusto Ramos (Cadmo 25 (2016) 101-113); Isaías Hipólito (Brotéria 184 (2017)
205-225)
[4] Documentos
da Igreja sobre a Bíblia (160-2010), Difusora Bíblica, 2011
[5] Marie-Joseph
Lagrange, O.P., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia,
Biblioteca Dominicana, Coimbra, Tenacitas, 2017
[6] A
Interpretação da Bíblia na Igreja, S. G. E., Rei dos Livros, 1994
[7] Cf.
Natalio Fernández Marcos, Septuaginta. La Biblia griega de judíos y
cristianos, Sígueme, Salamanca, 2008.