A Língua é um património valioso e um instrumento
determinante para a afirmação dos povos e das suas culturas, porque é através
dela que exprimem a sua identidade e as suas diferenças. Tal como a
espontaneidade da vida e dos costumes de cada povo, a Língua é um elemento
vivo, e não pode, por isso, ser prisioneira de imposições do poder político,
que limitam a sua criatividade natural.
O “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO90), nasceu de uma ideia
peregrina do então Primeiro-Ministro, Cavaco Silva, com o duplo objectivo de
“unificar” “as duas ortografias oficiais” do Português (sic) – alegadamente
para evitar que o Português de Portugal se tornasse uma “língua residual”(!) –,
e de “simplificar” a escrita. Na realidade, o que fez foi abrir uma caixa de
Pandora e criar um monstro. O AO90 – a que os sucessivos Governos, com uma
alegre inconsciência, foram dando execução –, é um fiasco político,
linguístico, social, cultural, jurídico e económico.
O processo de entrada em vigor do AO90 nos Estados lusófonos
começou por ser um golpe político: o AO90 teria de ser ratificado por todos os
Estados. Mas Angola e Moçambique, os dois maiores Países de língua portuguesa a
seguir ao Brasil, nunca o ratificaram. E, dos restantes países, só três o
mandaram “aplicar” obrigatoriamente: Portugal, a partir de 2011-2012, Cabo
Verde, a partir de 2014, e o Brasil, a partir de 2016. Os resultados desta
trapalhada estão à vista: em Cabo Verde, apenas dois anos depois, o Português
vai passar a ser “segunda língua” no ensino, e o Crioulo a língua principal. Um
dos grandes objectivos propalados pelo AO90 não era o de evitar que o Português
se tornasse numa “língua residual”?
“O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Foi o que
aconteceu com o AO90: os efeitos que produziu foram exactamente o contrário do
que se pretendeu.
Senão vejamos: o princípio que presidiu ao AO90 foi o de que
a ortografia deveria ser determinada pelo alegado “critério da pronúncia” (?!),
o que gerou aberrações da maior gravidade, de que damos apenas alguns exemplos:
ü Ao
pretender eliminar as consoantes “mudas”, o AO90 criou arbitrariamente centenas
de lemas (entradas de Dicionário), até aí inexistentes em qualquer das
ortografias (portuguesa ou brasileira): “conceção”, por “concepção”; “receção”,
por “recepção”, “espetador” por “espectador” — o que criou confusões
semânticas, como, por exemplo, “conceção de crédito”, “receção
económica” ou “espetador de cinema”.
ü No
entanto, pela mesma lógica, o AO90 deveria começar por cortar a mais “muda” de
todas as consoantes: o “h” inicial. O que não fez.
ü Estabeleceu
17 normas que instituem duplas grafias ou facultatividades, assentando num
critério que se pretende de acordo com as “pronúncias” (?!): “corrupto” e
“corruto”, “ruptura” e “rutura”; “peremptório” e “perentório”.
ü Óptico”
(relativo aos olhos), com a supressão da consoante “muda” “p”, passou a “ótico”
(relativo aos ouvidos), o que cria a confusão total entre os Especialistas e o
público, que deixam de saber a que órgão do corpo humano nos estamos a referir!
ü Em
Portugal, a eliminação sem critério das consoantes “c” e “p”, ditas “mudas”,
afasta as ortografias do Português europeu e do Brasil (quando o que se
pretendia era aproximá-las), criou desagregações nas famílias de algumas
palavras e provoca insólitas incoerências: passou a escrever-se “Egito”, mas
“egípcios”; produtos “lácteos”, mas “laticínios”; os “epiléticos” sofrem de
“epilepsia”; um “convector” opera de modo “convetivo”; o “interrutor” produz
uma “interrupção”.
ü O
facto de as facultatividades serem ilimitadas territorialmente (por exemplo,
“contacto” e “contato”; “aritmética” e “arimética”) conduz a uma multiplicação
gráfica caótica: por exemplo, o Curso universitário de “Electrónica
e Electrotecnia” pode ser grafado com 32 combinações diferentes; o que é
manifestamente absurdo.
ü A
confusão maior surgiu entre a população que se viu obrigada a ter de “aplicar”
o AO90”, e passou a cortar “cês” e “pês” a eito, o que levou ao aparecimento de
erros, tais como: “batérias”, “impatos”, “ténicas”,
“fição”; “adatação”, “atidão”, “abruto”; “exeto” (por
“excepto”); para além de cortarem outras consoantes, como, por exemplo, o
“b” em “ojeção”, ou o “g” em “dianóstico”.
ü No
uso de maiúsculas e minúsculas, o caos abunda; “Rua de Santo António” pode
escrever-se de quatro formas: também “rua de Santo António”, “rua de santo
António” ou “Rua de santo António” (se acrescentarmos as 4 do Brasil, com
“Antônio”, dá um total de 8 formas possíveis (!)).
ü O
AO90 prescreve ou elimina o uso do hífen de forma totalmente caótica. Vejamos
alguns exemplos: “guarda-chuva”, mas “mandachuva”; “cor-de-rosa”, mas “cor de
laranja”; zona “infantojuvenil”, mas “materno-infantil”; e aberrações como
“cocolateral”, “cocomandante”, “semirreta”, “conavegante”, “corréu”,
“coutente”.
ü Entre
outras arbitrariedades, a supressão do acento agudo cria situações caricatas. A
expressão popular: “Alto e pára o baile”, na grafia do AO90 (“Alto e para o
baile”) dá origem a leituras contraditórias. A frase “Não me pélo pelo pêlo de
quem pára para resistir” fica, com o AO90, escrita deste modo: “Não me pelo
pelo pelo de quem para para resistir” — o que é incompreensível, seja qual for
o contexto.
ü Em
contrapartida, para “compensar” o desaparecimento da consoante “muda” e evitar
o “fechamento” da vogal anterior, imposto pelo AO90, na escrita corrente,
surgem aberrações espontâneas como a colocação de acentos fora da sílaba
tónica: “correção” escrito “corréção”; “espetaculo” corrigido para “espétaculo”
ou mesmo “letivo” que passa a “létivo”!
Em suma, com este caos (orto)gráfico como se poderão
“ensinar” as crianças a escrever Português?
Mas há mais: o AO90 não incide sobre os factores de
divergência da linguagem escrita entre Portugal e o Brasil, nas quais existem
diferenças lexicais (fato – terno; autocarro – ônibus; comboio – trem),
sintácticas (tu – você) e semânticas (palavras com sentidos diferentes:
camisola, por exemplo, que, no Brasil, significa “camisa de dormir”). Estamos
perante diferenças atávicas que caracterizam as duas variantes do Português e
que não se alteram por decreto.
O caos na grafia grassa nos vários dicionários, correctores
e conversores. Com estas ferramentas discrepantes, os utilizadores da Língua
Portuguesa, que já têm dificuldade em “aplicar” o “Acordo”, ficam ainda mais
confusos e instáveis. Hoje, ninguém sabe escrever Português com o “Acordo”.
Sejamos claros: a diversidade ortográfica – entre apenas
duas variantes do Português: o de Portugal e o do Brasil – nunca foi obstáculo
à comunicação entre os diversos povos de Língua portuguesa; como nunca foi
razão de empobrecimento, mas, pelo contrário, uma afirmação da pujança da nossa
Língua; o que, aliás, faz dela uma das mais escritas e utilizadas do Mundo. O
Inglês tem 18 variantes, e não deixa por isso de ser a principal língua
internacional; o Francês tem 20 e o Castelhano, 15.
Por outro lado, as “aplicações” do AO90 afastam o Português
padrão das principais Línguas internacionais, o que só traz desvantagens em
termos etimológicos, de globalização e de aprendizagem dessas línguas
estrangeiras, em relação às quais não temos qualquer vantagem em nos afastar. Por
exemplo, a palavra “actor”. Em todas as línguas, como a nossa, em que a palavra
é de raiz latina, escreve-se “actor” com c ou k (excepto em Italiano, mas
em que se escreve com duplo tt, que tem idêntica função de abrir a vogal
“a”).
É caso para dizer que “foi pior a emenda que o soneto”.
Mas o AO90 é também um lamentável exemplo da forma como o
Estado abusou do seu poder. A “Nota Explicativa” contém erros crassos, falácias
e falsidades. Mais grave, nunca foi promovida qualquer discussão pública sobre
o AO90. Em 2005, foram emitidos 25 Pareceres negativos por parte de
Especialistas e de entidades consultadas. Porém, esses documentos foram
ocultados. Todo o processo do AO90, culminando com a Resolução do Conselho de
Ministros n.º 8/2011, é um péssimo exemplo de falta de transparência,
inadmissível num Estado de Direito democrático (artigos 2.º e 48.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa).
Por sua vez, o AO90 dividiu a sociedade e as gerações, ao
impor uma forma de escrita nas escolas, Universidades e instituições do Estado
e da sociedade civil — enquanto a esmagadora maioria dos Portugueses continua a
escrever com o Português pré-AO90.
A maioria dos escritores lusófonos, muitos dos professore
s,
dos tradutores e da Comunidade científica têm manifestado a sua repugnância em
acatar o “Acordo”. Mesmo o grande número dos que acatam o AO90, por convicção,
pragmatismo, inércia, subserviência, ou porque são obrigados a obedecer-lhe, na
realidade, escrevem em Português normal, e limitam-se a deixar que os textos
sejam depois adaptados pelos correctores ou revisores.
Finalmente, no domínio jurídico, há vários atropelos que
devem ser denunciados. Desde logo, o “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”,
para entrar em vigor, deveria ter sido ratificado por unanimidade, e não apenas
por 3 Estados, como sucedeu.
Por outro lado, o AO90 é inconstitucional, porque o Estado
não pode programar a cultura e a educação segundo quaisquer directrizes
estéticas, políticas ou ideológicas (artigo 43.º, n. 2, da Constituição). E
viola também o dever de defesa e de preservação do nosso património cultural
(artigo 78.º, n.º 1).
Em suma, o AO90 teve os efeitos exactamente opostos aos que
se propunha: não uniu, não unificou, não simplificou. É um fracasso político,
linguístico, social, cultural e jurídico. E é também um fracasso económico,
pois, ao contrário do que apregoou, não fez vender mais nem facilitou a
circulação de livros. Pelo contrário: as vendas caíram. No Brasil, o Português
pré-AO90 continua a ser preferido.
A Língua é o ins
trumento decisivo da formação das crianças e
dos jovens. Não podemos permitir que o arbítrio de decisões erradas seja
transmitido às gerações futuras, de que somos cuidadores, separando filhos e
pais, muitos dos quais escrevem hoje com ortografias diferentes.
Em 18 de Maio de 1991, durante a discussão no Parlamento
sobre o “Acordo Ortográfico”, o Deputado Jorge Lemos declarou, profeticamente:
“O acordo é inútil, ineficaz, secretista, prepotente, irrealista,
infundamentado, desnecessário, irresponsável, prejudicial, gerador de
instabilidade e inoportuno. (…) Por isso, Sr. Presidente e Srs. Deputados, este
texto que nos foi distribuído, como sendo o texto do Acordo, só pode ter uma
solução: ser rasgado.” E, perante a Assembleia, passou das palavras aos actos –
e rasgou-o.
25 anos depois, é mais do que tempo de lhe seguirmos o
exemplo.