quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

AS RELIGIÕES E O TERRORISMO




Os principais conflitos do final do século XX e dos inícios do novo milénio possuem um transfundo religioso. Assim, na Irlanda, no Kosovo, em Cachemira, no Afeganistão, no Iraque e no novo Estado Islâmico, extremamente violento. Ficou claro em Paris com o assassinato dos cartunistas e outras pessoas por fundamentalistas islâmicos. Como nisso entra a religião?

Não sem razão escreveu Samiuel P. Huntington em seu conhecido livro O choque de civilizações: “No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas….O que em última análise conta para as pessoas não é a ideologia política nem o interesse económico; mas aquilo com que as pessoas se identificam são as convicções religiosas, a família e os credos. É por estas coisas que elas combatem e até estão dispostas a dar a sua vida” (1997, p.79). Ele critica a política externa norte-americana por nunca ter dado o devido peso ao factor religioso, considerado algo passado e ultrapassado. Ledo engano. É o substrato dos mais graves conflitos que estamos vivendo.

Quer queiramos ou não, e não obstante o processo de secularização e o eclipse do sagrado, grande parte da humanidade orienta-se pela cosmovisão religiosa judaica, cristã, islâmica, xintoísta, budista e outras.

Como já afirmava Christopher Dawson (1889-1970), o grande historiador inglês das culturas: “as grandes religiões são os alicerces sobre as quais repousam as civilizações”(Dynamics of World History,1957,p.128). As religiões são o “point d’honneur” de uma cultura, pois através dela projecta os seus grandes sonhos, elabora os seus ditames éticos, confere um sentido à história e tem uma palavra a dizer sobre os fins últimos da vida e do universo. Somente a cultura moderna não produziu religião nenhuma. Encontrou substitutos com funções idolátricas, como a Razão, o progresso sem fim, o consumo ilimitado, acumulação sem limites e outros. A consequência foi denunciada por Nietzsche que proclamou a morte de Deus. Não que Deus tenha morrido, pois não seria Deus. É o facto de que os homens mataram Deus. Com isso queria significar que Deus não é mais ponto de referência para valores fundamentais, para uma coesão por cima entre os humanos. Os efeitos estamo-los a viver num nível planetário: uma humanidade sem rumo, uma solidão atroz e o sentimento de desenraizamento, sem saber para onde a história nos leva.

Se quisermos ter paz neste mundo precisamos resgatar o sentimento do sagrado, a dimensão espiritual da vida que estão nas origens das religiões. Na verdade, mais importante que as religiões é a espiritualidade que se apresenta como a dimensão do humano profundo. Mas a espiritualidade exterioriza-se sob a forma de religiões, cujo sentido é alimentar, sustentar e impregnar a vida de espiritualidade. Nem sempre o realiza porque quase todas as religiões, ao institucionalizarem-se, entram no jogo do poder, das hierarquias e podem assumir formas patológicas. Tudo o que é sadio pode ficar doente. Mas é pelo “sadio” que medimos as religiões, bem como as pessoas e não pelo “patológico”. E aí vemos que elas preenchem uma função insubstituível: a tentativa de dar um sentido último à vida e oferecer um quadro esperançoso da história.

Ocorre que hoje o fundamentalismo e o terrorismo, que são patologias religiosas, ganharam relevância. Em grande parte deve-se ao devastador processo de globalização (na verdade é ocidentalização do mundo) que passa por cima das diferenças, destrói identidades e impõe-lhes hábitos estranhos.

Geralmente, quando isso ocorre, os povos agarram-se àquelas instâncias que são os guardiães de sua identidade. É nas religiões que guardam as suas memórias e os seus melhores símbolos. Ao sentirem-se invadidos como no Iraque e no Afeganistão, com milhares de vítimas, refugiam-se em suas religiões como forma de resistência. Então a questão não é tanto religiosa. Ela é antes política que se serve da religião para se autodefender. A invasão gera raiva e vontade de vingança. O fundamentalismo e o terrorismo encontram nesse complexo de questões o seu nicho de origem. Daí os atentados do terror.

Como superar este impasse civilizacional? Fundamental é viver a ética da hospitalidade, dispor-se a dialogar e aprender com o diferente, viver a tolerância activa, sentir-se humano.

As religiões precisam reconhecer-se mutuamente, entrar em diálogo e buscar convergências mínimas que lhes permitem conviver pacificamente.

Antes de mais nada importa reconhecer o pluralismo religioso, de facto e de direito. A pluralidade deriva de uma correcta compreensão de Deus. Nenhuma religião pode pretender enquadrar o Mistério, a Fonte originária de todo ser ou qualquer nome que quisermos dar à Suprema Realidade, nas malhas de seu discurso e de seus ritos. Se assim fora, Deus seria um pedaço do mundo, na realidade, um ídolo. Ele está sempre mais além e sempre mais acima. Então, há espaço para outras expressões e outras formas de celebrá-lo que não seja exclusivamente através desta religião concreta.

Os onze primeiros capítulos do Génesis encerram uma grande lição. Neles não se fala de Israel como povo escolhido. Refere-se aos povos da Terra, todos como povos de Deus. Sobre eles paira o arco-íris da aliança divina. Esta mensagem recorda-nos ainda hoje que todos os povos, com as suas religiões e tradições, são povos de Deus, todos vivem na Terra, jardim de Deus e que formam a única Espécie Humana composta de muitas famílias com suas tradições, culturas e religiões.
Leonardo Boff [1]



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